domingo, 23 de julho de 2017

O Cipião Africano


Sou Públio Cornélio Cipião, general romano. A história testemunhará o meu triunfo sobre os cartagineses. Trucidarei Aníbal e seu exército de mercenários e voltarei à Roma exortado como o grande Cipião Africano. Nasci da união de uma serpente oculta no ventre da minha mãe, que conversa comigo e me acompanha nas minhas realizações. Não sou o mais forte ou mais poderoso dos generais de Roma, tampouco sou o melhor orador desta infecta, porém pujante, República. O que me engrandece é o conhecimento sobre os homens. Sua natureza, suas fragilidades e seus devaneios.

Em que pese tenha tido recentes oposições políticas aos meus planos, já que Pompeius Aelianus defendeu, em Assembléia, que seguíssemos no enfrentamento das tropas cartaginesas mais próximas, rumei em direção ao sul. Considerei uma tolice sem tamanho a proposta de permanecer em disputas naquelas paragens, já que nossas forças estão na proporção de um para três em relação às deles. Além disso, no sul é onde estão a riqueza, as armas e reféns das forças cartaginesas, sendo seu domínio mais importante para as nossas pretensões no contexto geral da guerra.

Escrevo agora de Nova Cártago, triunfalmente tomada por mim. Um terrível banho de sangue. Não creio que aguardavam nossa chegada nesta região da costa mediterrânea de Hispânia. Havia apenas uma pequena guarnição cartaginesa nas posições defensivas desta cidade. A conformação geográfica do lugar e suas grandes muralhas eram, na verdade, seus importantes defensores. Aproveitei a maré baixa que me foi concedida por intervenção divina e pude ordenar, após a travessia de uma laguna, furtivamente, a escalada da muralha protetora da cidade, do que resultou a vantagem estratégica que decidiu o embate em nosso favor. Ordenei contenção aos meus comandados na sua costumeira sanha de pilhar a cidade e cavalgar suas mulheres.

Maximmus, meu ajudante de ordens, me trouxe uma bela donzela capturada durante nossa invasão. Tem silhueta angulosa e uma magnífica garupa, dessas próprias das mulheres ibéricas. Revestem tais formas uma pele branquíssima e um olhar altivo, pretensioso e destemido, incomum nas mulheres inferiores e, sobretudo, nas subjugadas em invasões militares. Trazida a minha presença, não se curvou nem desviou o olhar. Ao contrário, olhou-me firmemente nos olhos, como se contestasse a autoridade militar que a intervenção divina me concedeu sobre sua vontade. Sua intransigência me fez ferver febrilmente dentro da minha armadura, ainda fétida e encharcada de sangue ibérico da batalha campal. Delirei de luxúria e, curiosamente, não de ira.

Inquiri-a sobre suas origens. Disse-me ser celtíbera, secamente, sem o olhar complacente e rogativo de clemência com que tantas vezes me deparei nessas ocasiões. Despiu-se como que protocolarmente, olhando-me nos olhos. “Cumprirei o encargo que Vossa Excelência determinar se isso redundar na salvaguarda da minha família”, disse, reverenciando-me, com elegância, na sua túnica branca, levemente enlameada na altura dos joelhos, pelo que, presumo, tenha sido a prece que antecedeu a transposição do muro por nossa centúria. Permaneci imóvel no trono que violentamente e arbitrariamente ocupei, absorvido por seus gestos singelos e delgados e embebido no perfume que escapava dos seus ondulados cabelos castanhos. Senti-me arisco e forte e desejei possuí-la vorazmente e, mais que isso, cavalgá-la maliciosamente conforme manda a lendária tradição equestre de Celta.

Contive-me, no entanto. Ordenei que Maximmus fosse à aldeia procurar pelo senhor pai da donzela. Ele, aturdido ante a minha ordem e demonstrando espanto, pediu-me que repetisse o comando, para sua melhor compreensão. “Ordeno-lhe que procure o pai da donzela e traga-o à minha presença, imediatamente”, disse-lhe, em tom imperativo, ao que ele se retirou rapidamente, deixando a sala de comando. À donzela, que, nesse momento, estava igualmente confusa e cobria seu busto com os braços entrecruzados formando um anguloso “x”, ordenei que se dignasse a cobrir suas vergonhas e mandei que aguardasse pela chegada do seu pai. Momentos depois, mostraram-se à minha presença Maximmus e o velho celtíbero pai da moça. Antes que pudesse me reverenciar, levantei-me do trono e dirigi-me rapidamente a eles, ocasião em que, unindo as mãos de pai e filha, devolvi-lhe, intocado, seu precioso tesouro, dizendo-lhe: “Pela glória de Roma e harmonia das populações ibéricas, devolvo-lhe, senhor, sua amada filha”. Disso seguiram-se o choro e a gratidão de ambos, que se puseram aos meus pés, agradecendo o gesto piedoso.
       
Tal gratidão aproveitou aos cofres da nossa empreitada, já que se tratava de rico proprietário de terras, que, em sinal de respeito e consideração, somou vultosas quantias que servirão para engrossar as fileiras do esforço militar romano e depositou trigo para alimentar nossos destemidos guerreiros. Chegou-me ao conhecimento, ainda, que a donzela estava prometida a um jovem comandante de nome Alúcio, que havia sido aprisionado durante a nossa conquista. Imediatamente determinei sua libertação e entreguei-o solenemente à sua agora esposa em ato público que celebrou simbolicamente a união das populações ibéricas e reforçou a legitimidade da nossa presença na região, facilitando a adesão dos nativos aos nossos propósitos. Fui reverenciado por sinos durante três dias seguidos.
       
Os anos da minha curta existência estão passando e vejo que mais importante que força física e coragem são o comportamento temperante e a compreensão sobre os homens. Eles, e mais precisamente, seus corações, devem ser os destinatários da nossa atenção e objeto das nossas conquistas. A espada com que lhes sangro o peito deve servir, também, para condecorá-los quando se dignem a unir-se a nós. Devemos-lhes respeito por sua coragem na batalha e por assentirem com nossa presença nas suas casas. Sem eles, sem esses homens a quem hoje subjugamos, seremos sempre ovelhas cercadas por um matilha de lobos. Seremos um castelo de cartas frágil, a ser destruído por qualquer ventania. Com a adesão e respeito dos povos conquistados somaremos as forças que, sob minha liderança, destruirão Aníbal e incendiarão Cártago. Escreverei meu nome na história e, no longínquo século XXI, em terras que hoje desconhecemos, serei lembrado e reverenciado como artífice de uma civilização que ditará por milênios as bases da convivência entre os homens.

A imagem acima, reproduzida sem fins lucrativos e assegurando os direitos reservados, é uma reprodução da obra  "Clemência de Cipião", de Giovanni Bellini, que está depositada na Galeria Nacional de Arte, em Washington D.C.