sábado, 6 de outubro de 2018

Símios





Unidos por ancestralidade, são eles, igualmente, exemplares magníficos dos complexos mamíferos placentários.

Dentro da nossa similaridade morfológica, partilhamos irmanadamente a mesma estrutura óssea e simiescos traços hereditários.

Exibindo protuberantes dentes caninos, mordemos a mesma crua carne mordida por Luzia e o adormecido bebê de Taung.

Fomos, sim, antecedidos pelos robustos australopithecíneos, e suspeita-se possa ter havido fluxo genético genuíno com os primos neandertais.

E não, não somos os únicos caminhantes no bipedalismo, já que assim já procediam os afarensis das pradarias africanas orientais.

(...)

Quando, a partir da primatologia, compreenderem que iguais polegares opositores consolam fetos símios em materna cavidade abdominal;

Aí reverenciaremos a estes espécimes como exuberantes filhos da Natureza, por identificarmos que partilhamos, assim, com eles, semelhante DNA mitocondrial!

06/10/2018.

Milford Sounds, Nova Zelândia.








quinta-feira, 4 de outubro de 2018

Multiverso



João Pessoa. Noite de 13 de outubro. Beco da Faculdade de Direito. 

Aturdido, cambaleio pelas encardidas escadarias. 

Os lupanares pulsam como de costume, ao som da lasciva música gitana.

De cima, nas sacadas, messalinas escarram um viscoso fluido, que escorre pela calçada.

Nele pululam milhões de agentes patogênicos, fusão democrática de todas as endemias paraibanas.

Ébrios e vadios circundam como zumbis, reproduzindo o vôo coletivo dos abutres.

Sou interpelado. Questionam-me o que faço ali.

Vi-me murmurando uma resposta que nem mesmo eu sabia.

Torno-me mero espectador da cena.

(...)

De súbito, irrompe da penumbra o mórbido e funesto guardador da nossa branquíssima carruagem.

Ele sussurra em meus ouvidos com sua grave voz gutural. Aponta, vagarosamente, seus delgados dedos negros e, no horizonte, reconheço, entre fumaça, meus anciãos colegas e, depois, a mim!

(...)

Em que abjeto recorte da linha do tempo aqui viemos parar? - pergunto.

Por que nos transformamos nestas vis e imundas criaturas?

Fitando-me, ele riposta: “eis vosso destino alternativo. Vede o que vos tornaras. Essa realidade também vos sucedeu”. 

Rememorou, na rouquidão de sua voz, enquanto desaparecia, uma frase dita por um catedrático: “os testes não reprovam, mas a vida sempre reprova”. Fez-se o silêncio. 



*Homenagem afetuosa aos colegas da Faculdade de Direito da Paraíba: Henanh Meireles, Bruno Guedes, Iranildo Costa, Noberto Sales, Ítalo Oliveira e, post mortem, ao saudoso Tibiri, sempre lembrado. 



*A Faculdade de Direito da Paraíba localiza-se na Praça dos Três Poderes, em João Pessoa, onde também localizados o antigo Tribunal de Justiça, a Assembleia Legislativa e o Palácio do Governo. 
O Beco da Faculdade é uma escura rua lateral, enladeirada e cheia de escadarias, que deságua em zona de baixo meretrício.

Escrito no dia 04/10/2018, na The Winery, em Queenstown, Nova Zelândia.




terça-feira, 10 de julho de 2018

Encontro Inusitado


Conversei brevemente com o Imperador Trajano ontem à noite. Acreditava estar dormindo, mas me vi desatando os arreios de seu cavalo, enquanto ele desmontava e passava em revista os soldados feridos em um acampamento militar.

Estávamos, se bem recordo, no que seria a atual Romênia, em enfrentamento às tropas dácias, no que presumo seja o ano de 107 depois de Cristo. Isso segundo posso agora estimar pela análise dos fatos que presenciei.

Lembro que chovia bastante e a lama parecia brotar entre as tendas militares de descanso. Em um campo absolutamente alagado, onde o musgo engolia meus pés, havia centenas de soldados feridos, rogando por proteção aos deuses. Entoavam, ao nosso redor, lamúrias e choravam copiosamente, de dor e aflição. O César, que caminhava pausadamente, observava complacentemente a cena.

A despeito disso, irrompeu certo frenesi. Com os integrantes da cavalaria chegara a notícia de que o Rei da Dácia, Decébalo, estava morto e, portanto, a campanha militar logo se encerraria.

E foi Tiberius Claudius Maximus, oficial da cavalaria romana, quem trouxe a ensanguentada cabeça do soberano, envolta em uma túnica vermelha, que pingava um sangue escuro e viscoso. Disse ao Imperador Trajano que Decébalo havia tirado a própria vida, cortando com a espada o próprio pescoço, quando se viu cercado pelos cavaleiros romanos.

Coube a mim receber cuidadosamente a nobre fronte das mãos de Tiberius e guardá-la em um baú, a ser remetido à Roma, já que o Imperador demonstrou certa indisposição em tocá-la, tendo indicado com a mão para que eu cuidasse do sinistro troféu.

Deu ordens, em seguida, para que se procurasse pelos restos mortais do finado soberano, com o objetivo de que lhe fosse providenciado um enterro com dignidade compatível com a função por ele exercida. Virou-se, enquanto retiravam sua armadura.

Encerrado o penoso dia no front de batalha com a alvissareira notícia, recolhemo-nos todos à tenda imperial. Nela, fomos recebidos com frutas frescas da região e um vinho de excelente qualidade. Foi reservada ao Imperador a companhia de belas donzelas da região.

Findo o jantar, tratou o César de resolver as questões de política pendentes, dialogando com Senadores que acompanhavam a campanha militar. Pude escutá-lo vaticinar que anexaria, em breve, a região compreendida pelo Império Parta, correspondente à Armênia, Assíria e Mesopotâmia. Parecia exercer considerável influência sobre os reconhecidamente traiçoeiros aristocratas.

Confiou a mim, soldado da guarda imperial e, aparentemente, seu ajudante de ordens, que providenciasse a desmobilização do acampamento e que enviasse mensageiro à Roma e ao resto do mundo, contando sobre a acachapante vitória sobre os dácios. Recomendou-me pressa e precisão no texto a ser redigido.

Disse-me, como em despedida, olhando em meus olhos, que eu viveria em novo século e milênio para ver que o Império Romano chegaria com ele à sua máxima extensão territorial e esplendor. Contou, também, que não haveria outro governante, nos seguidos séculos, que trouxesse, a partir da lucidez e temperança, maior glória ao Império dos Impérios. Rememorou-me a lição de Horácio: “Est modus in rebus”, enquanto desaparecia. 

...

Ofegante, acordei.

(...)

Marco Úlpio Nerva Trajano (em latim: Marcus Ulpius Traianus; 18 de setembro de 539 de agosto de 117) nasceu em Itálica (atual Santiponce), na Bética, no sul da Hispânia, perto de Híspalis (depois Sevilha) em 53 d.C. Foi imperador romano de 98 a 117. Durante sua administração, o Império Romano atingiu sua maior extensão territorial graças às conquistas do leste. Trajano também é notado pelos seus extensos programas de obras públicas e as políticas sociais implementadas durante o seu reinado.
É considerado por muitos romanos da época e por alguns historiadores como o maior dos imperadores romanos.
A titulação completa de Trajano no momento de sua morte era:
Imperator Caesar Divi Nervae filius Nerva Traianus Optimus Augustus Germanicus Dacicus Parthicus, Pontifex maximus, Tribunicia potestate XXI, Imperator XIII, Consul VI, Pater patriae

  

*Texto explicativo e imagem retirados da Wikkipédia e aqui reproduzidos sem fins lucrativos. A primeira imagem diz respeito a “A Coluna de Trajano”, monumento em Roma construído sob a ordem do Imperador Trajano, pelo arquiteto Apolodoro de Damasco em comemoração às vitórias das campanhas militares contra os dácios. A segunda imagem mostra a extensão do Império Romano durante o governo de Trajano.

segunda-feira, 9 de julho de 2018

Recordações




A gravidade é uma das quatro forças fundamentais da natureza, em conjunto com o eletromagnetismo, a força fraca e a força forte. Ela não pode ser vista em concreto, mas é aferível cientificamente e facilmente demonstrada pelo peso que se pode observar nos objetos, que faz com que caiam ao chão caso sejam soltos.

Do ponto de vista cosmológico, a gravidade faz com que a matéria dispersa se aglutine, e que essa matéria aglutinada se mantenha intacta, permitindo dessa forma a existência de planetas, estrelas, galáxias e da maior parte dos objetos macroscópicos no universo.

...

Há alguns anos perdemos nosso avô Hermillo.

Vez ou outra me ponho a pensar sobre ele.

Já faz alguns anos que não nos vemos, embora sempre estejamos o escutando, pelas histórias que contamos e relembramos de sua vida. Somos, eu e ele, inclusive, colegas de profissão, embora ele não tenha chegado a saber disso.

É uma pena que eu era relativamente jovem quando de sua partida. Certamente nos compreenderíamos melhor, agora que sou adulto e posso ver o mundo de maneira análoga a que ele certamente via. Tivesse ele partido mais tarde, poderia eu (e meus familiares) tê-lo apreendido melhor.

Era um homem de uma memória invejável, que recitava de cabeça um abrangente catálogo de textos e poemas. Tinha bastante interesse em ciência e fazia observações curiosas e percucientes sobre aspectos interessantes da existência humana.

Era um sujeito que seria visto como excêntrico, em comportamento e predileções, e que guardava um atrativo mistério sobre sua personalidade, talvez por ser, de certo modo, pouco previsível, inclusive no agudo senso de humor.

Seu fanatismo por recordações era incompreendido por mim quando criança. Ao longo da vida, ele preencheu inúmeras paredes com fotografias de antepassados e textos históricos. Esse costume se intensificou à medida que envelhecia. Confesso que, quando criança, temia aquelas fotos antigas em preto e branco de pessoas já falecidas. Os textos, ao tempo, pela sua complexidade, eram pouco representativos para mim, a não ser as mensagens mais simples, como o “É não se fazendo nada que se aprende a fazer o mal” estampado em cima da televisão, que já compreendia perfeitamente, como um desestímulo ao ócio.

Um outro desses textos, de autoria de Abraham Lincoln e escrito em papel com aspecto de pergaminho, foi, inclusive, xerocopiado por meu pai e dado a mim de presente em moldura, guarnecendo, hoje, uma das paredes do meu gabinete. Trata-se de importante lição de respeito à natureza livre do ser humano e de civismo.

Agora que, mais maduro, vejo a vida com olhos parecidos com os dele, vejo que sua sanha em documentar e expor aquilo que ele achava importante era sua maneira de deixar para seus descendentes e conhecidos suas impressões e sua forma de ver o mundo, coisa que, aliás, também gosto de fazer quando aqui escrevo.

A aposição das tais fotografias dos antepassados eram homenagens rendidas aos entes queridos, que além de compartilharem sangue, material genético e origem comuns, ajudaram a escrever nossa personalidade e nos tocam, constantemente, com lições sobre a vida e exemplos, bons e ruins, como é próprio do comportamento humano.

Os tais textos históricos são, hoje, melhor compreendidos a cada vez que os leio, quando perco o olhar sobre um deles, entre uma ida e outra à sala ou quando abro a geladeira e eles lá estão revestindo a parede, aguardando nova leitura.

...

Percebo, hoje, que a influência por ele deixada não difere da influência da gravidade sobre os corpos celestes. Não pode ser vista, mas pode ser fortemente sentida e nos toca diariamente. Possui, também, o mesmo efeito aglutinador, mantendo junta a matéria de que somos formados, criando um conjunto finito e predominantemente coeso de corpos chamado família.



Melancholia


Esse é o título de um filme dinamarquês, dirigido pelo polêmico Lars von Trier. É estrelado por Kirsten Dunst (do filme "As Virgens Suicidas"), que interpreta uma melancólica noiva, abandonada pelo marido no dia seguinte ao da cerimônia de casamento e que, mergulhada em depressão profunda, se mostra absolutamente tranquila e impassível ante a iminente destruição da Terra em virtude da colisão com outro planeta, que se aproxima lentamente.

Tal apatia, na verdade, é um comportamento bastante observado nas pessoas que passam por episódios de depressão, que reagem com desapego, calma e desinteresse em relação a acontecimentos catastróficos. É um estado de letargia, de “tanto faz”, de não pertinência, que invade as pessoas que não têm perspectivas de felicidade em curto ou médio prazo.

Passada a eliminação da seleção brasileira na Copa do Mundo, temos notado um estado de desânimo nacional generalizado. Todo o lirismo, espírito de corpo e otimismo que cercam esses eventos foram subitamente substituídos por aquilo que a ninguém é dado desconsiderar por muito tempo: a implacável realidade.

Ela, que estava nos bastidores, como que um bicho à espreita, retorna, pulsante, febril e enérgica, às luzes do palco principal.

Se antes podíamos nos embriagar nas manchetes esportivas, nos papos sobre futebol e praticando o habitual escapismo moderno, consistente em se furtar ao clique em links de temas pesados, agora voltamos, inescapavelmente, à conhecida rotina.

Receber textões no whatsapp; ser interpelado em salas de espera de clínicas médicas para falar sobre o sombrio cenário político brasileiro; observar discussões entre transeuntes sobre temas de evidente desacordo moral, como aborto, legalização das drogas, machismo/feminismo; ser questionado sobre o seu voto nas próximas eleições pelo padeiro. Aconteceu: definitivamente, voltamos à nossa conhecida realidade.

Tanto que somos bombardeados por esses temas na nossa vida diária que acredito que precisávamos mesmo desse período de expurgo. Pena que durou tão pouco. Receio que tenha sido insuficiente para arejar nossas mentes. Com a derrota da seleção, perdemos nossa válvula temporária de escape.

Aturdidos, conformados e apáticos, voltamos à realidade.


*Imagem relativa ao material de divulgação do citado filme, reproduzida aqui sem fins lucrativos. 

sexta-feira, 27 de abril de 2018

Bluntness


Tenho visto que, nos últimos tempos, as pessoas estão muito cansadas de hipocrisia e de insinceridades, até mesmo as mais leves.

O grau de tolerância com discursos padronizados, onde não se sabe muito bem o que quer dizer o interlocutor, ou mesmo os politicamente corretos, tem diminuído abruptamente, como vocês bem devem estar percebendo.

Pensando nisso, lembrei de uma história interessante...

Conheci um sujeito que sempre teve esse tipo de intolerância a falsidades. Nascido em Sousa/Paraíba e morador de Salgueiro/Pernambuco, Seu Camilo sempre foi caminhoneiro, transportando algodão desde Cabrobó até o Ceará e, posteriormente, couro para a indústria coureira da região do Vale do São Francisco (Curaça, Uauá, Belém do São Francisco, Paulo Afonso). Hoje em dia, aposentado, em decorrência do seu pragmatismo e tino nos negócios, é dono de extensas terras na região do Motoxó-Pajeú e cria ovinos e produz derivados desses animais, como leite e queijo.

Cidadão ordeiro e conservador, Seu Camilo sempre se notabilizou pela sua franqueza. Na verdade, há uma palavra em inglês que melhor descreve sua personalidade, sem paralelo no português, que é a palavra “bluntness”.

“Bluntess” é a qualidade daquele que diz verdades cortantes sem se preocupar em criar arestas. Muito presente nos irlandeses, é uma franqueza qualificada pela obsessão com a precisão do discurso e despreocupada com o desconcerto ou o sentimento de absurdo que a emissão da opinião pode causar.

Na verdade, essa característica não é incomum no sertão nordestino, sendo até corriqueira na região de Sousa, na Paraíba, cidade natal do personagem, como podem atestar os que têm amigos por lá. No entanto, Seu Camilo a levava a extremos.

Sua obsessão pela exatidão das informações resultou em diversas intrigas na cidade de Salgueiro. É que ele não aceitava que lhe contassem informações abrandadas ou não exclusivamente e precisamente verdadeiras.

Seu Camilo cumprimentava as pessoas na rua conforme seu exato grau de intimidade. Nem mais nem menos. Havia pessoas para as quais o “olá” era suficiente, para outras era possível perguntas e assuntos mais delongados, desde que o assunto fosse, de fato, interessante.

Acenava para todos e era sempre cortês, mas não praticava small talk com pessoas fora de seu ciclo restrito de amizade e se o fazia era para dizer exatamente a verdade. Na verdade, não tolerava conversas ditadas por convenções sociais, sem qualquer finalidade evidente ou utilidade. Se alguma pessoa pouco conhecida lhe perguntasse sobre sua vida, ele respondia exatamente o que pensa dela, sem nenhum abrandamento ou dizia que achava que a pessoa não estava realmente interessada e que era desnecessário esse tipo de trato com ele.

Prestigiado que sempre foi nas cidades, sempre era convidado para dar algumas palavras em qualquer evento. Sua esposa, Dona Marilda, no entanto, que conhecia a figura, sempre interceptava o microfone e passava para outra pessoa. Sabia ela que, Seu Camilo, se fosse instado a falar sobre alguma coisa teria extrema dificuldade em falsear defeitos sobre o objeto discutido ou mesmo destacar apenas o lado positivo, floreando seu discurso para ser agradável. É que ele sempre dizia exatamente a verdade.

Em uma dessas ocasiões, Dona Marilda foi beber um copo de água na festa, deixando brevemente o recinto, e o microfone veio a cair nos colos de Seu Camilo. Era aniversário de uma sobrinha. O discurso dele foi breve:

“Olha, eu não tenho muito o que falar sobre a menina, porque não a conheço muito bem e só vi umas duas vezes, já que a mãe dela se mudou para morar com aquele andarilho barbudo que vive com um violão nas costas. É uma moça que parece não ter nem qualidades nem defeitos. Nem é bonita nem é feia. Nem parece ser sabida nem burra. Então, não há nada que eu possa falar”.

Não havia qualquer grosseria em sua voz, nem qualquer pretensão de ofender. Ele apenas dizia o que realmente achava sobre tudo. Era o jeito dele. Alguns compreendiam, outros não. Curiosamente ele despertava muita admiração e simpatia de algumas pessoas, inclusive, confesso, a minha. Admirava seu rigor com a própria sinceridade. Ademais, era uma figura muito sóbria e com quem se podia conversar diretamente, sem arrodeios.

Certa feita, compareceu ao velório de um famigerado comerciante da cidade, Osvaldinho dos Couros. Pessoa de má reputação na cidade e inadimplente habitual. Novamente, Dona Marilda dormiu no ponto e Seu Camilo foi chamado a discursar sobre o falecido. Alguns, na plateia, gelaram.

Ele pensou alguns segundos e disse, tranquilamente e sem prestar muita atenção na platéia, o seguinte:

“Rapaz, conheci Osvaldinho em 1968, numa vaquejada que teve em Serra Talhada. Éramos dois garotões no tempo. Ele corria boi num cavalo forte, alazão. Desde aquele tempo eu nunca vi ele pagar uma conta em dia. De três carradas de couro que mandei para ele, ele ainda me deve todas as três. Cobrei tanto até que cansei e desisti. Agora parece que não vou receber mesmo. Nesses últimos tempos inventou um negócio de artesanato que só serviu para roubar o pai. Deixou a família na miséria. Gostava de tramóia que só ele. Vive, quer dizer, vivia pendurado num emprego da Prefeitura. Era babão de político. Nunca bateu um prego numa barra de sabão. Era um sujeito pabuloso, garganteiro e amostrado, além de fofoqueiro, já que falava mal de Deus e o mundo. Sua participação na Terra num passa de uma nota 5. Sorte teve a viúva, que pode viver sem ele a partir de agora.”

No final, deu-se conta que, até para os padrões dele havia exagerado e disse, rapidamente, um “Que Deus o tenha”, dando dois passos para trás e alinhando com o resto da plateia. Antes que se fizesse o silêncio de espanto que normalmente se seguia aos discursos de Seu Camilo, Dona Marilda, experiente nessas ocasiões, engatou um “Ave Maria cheia de graça, o Senhor é convosco, bendita sois Vós entre as mulheres...” no que foi seguida pelas carpideiras.



quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

2027

O ano é 2027. A nação está em profunda crise política e econômica há dez anos. Partidos políticos de todas as matizes ideológicas chegaram ao poder e o deixaram, abruptamente, em decorrência de escândalos noticiados pela imprensa. Na última década, nenhum Chefe de Governo conseguiu completar um ano de governo, tendo sido substituído por interventores e, em seguida, por políticos de ideologia diametralmente oposta.

No Parlamento, subsistem velhos e novos congressistas, poucos dos quais conseguem a reeleição. Os eleitores, frequentemente, se frustram por não terem suas pretensões atendidas e decidem redirecionar seu voto para outro político que prometa atender-lhes de algum modo. Os representantes mais votados são os ex-participantes de programas de canais da Internet e os que decidiram delegar, por completo, sua intenção de voto aos seus eleitores, que manifestam sua opinião por meio de plataformas virtuais.

Os partidos políticos passaram por intensa modificação. Após o desgaste e cansaço da população quanto ao debate ideológico entre esquerda e direita, eles deixaram de representar e defender ideais políticos e passaram a congregar segmentos de pessoas, agregados por condição econômica, etnia ou outra característica peculiar. Assim, foram criados o PNB (Partido dos Novos Pobres), para representar a classe média relegada à pobreza após a crise econômica, o PME (Partido das Minorias Étnicas) e o PSP (Partido dos Servidores Públicos).

Há cerca de cinco anos a multiplicação de tais partidos resultou na subrepresentação dos cidadãos que não integravam qualquer uma dessas agremiações. Esse contigente populacional passou a ter dificuldades cotidianas, desde para conseguir lugares nas filas para alimentação, até para encontrar vagas disponíveis na rede de saúde pública. As benesses legislativas para grupos específicos esvaziaram as vagas gerais para o grosso da população e, para contornar esse quadro, foi criado o PR (Partido do Resto).

Após uma profunda crise de credibilidade e da descoberta do envolvimento de membros da imprensa com políticos envolvidos em casos de corrupção, os veículos de imprensa tradicionais perderam toda credibilidade e espaço para meios jornalísticos alternativos, em redes sociais e blogs da Internet. Figuras importantes do jornalismo nacional, após perderem o emprego, apresentam jogos interativos por meios de plataformas streaming na Internet e programas de venda online.

As redes sociais e aplicativos de smartphones dominam o debate social e político. Novas formas de democracia direta foram inventadas e o cidadão opina, diariamente, pelo smartphone, com reconhecimento biométrico, sobre quem deve ganhar o programa de culinária de maior audiência e sobre propostas legislativas de grande importância, como a recente proposta de descriminalização do crime de estupro, desde que consentido pelos pais.

Os julgamentos passaram a ser transmitidos pela Internet. É possível acessar cada uma das salas dos Tribunais em tempo real e checar o que se está decidindo, com a possibilidade de opinar a cada um dos Juízes sobre o que deve ser decidido.

A Nova Suprema Corte registrou semestre passado o primeiro caso em que houve direta participação popular, com a possibilidade de consulta da Sociedade por meio de enquete virtual, que passou a ter o valor de voto correspondente a dois dos cinco ministros. O julgamento resultou na absolvição de conhecido jogador de games virtuais pelo assassinato de seus pais. As estatísticas de acesso revelaram ter sido o site acessado por grande quantidade de jovens, fãs do citado réu.

Os julgamentos transmitidos pela Internet, ao contrário do que poderia se presumir na década passada, duram hoje muitas e muitas horas. Isso porque cada um dos Juízes explica, didaticamente, à população em casa os motivos pelos quais decide dessa ou de outra forma. Além disso, tendo sido extinta a vitaliciedade dos magistrados, há a preocupação do Juiz em renovar seu mandato, o que lhe demanda a necessidade de prestar contas à população sobre como decide. O decano da Corte tem fortes ligações com o Partido dos Novos Pobres e detém a maior quantidade de seguidores na rede social que reúne os fãs das transmissões de julgamentos.

Além disso, nas sessões colegiadas, são constantes os episódios de agressões verbais entre os Juízes. A assessoria de imprensa dos magistrados monitora a percepção do público e tais informações subsidiam a postura a ser adotada por cada um, em busca de melhor aceitação junto à opinião pública e, por consequência, reeleição para o cargo.

Os agentes públicos buscam, incessantemente, promoção pessoal e se associam a membros da imprensa e a detetives virtuais particulares para formar dossiês contra adversários políticos.

A sociedade não deposita confiança em qualquer das instituições, tampouco as pessoas depositam confiança em qualquer outra pessoa. Tornaram-se populares os encontros nas piscinas de hotéis, como forma de evitar a gravação de conversas entre os interlocutores. As pessoas evitam fotos com grupos de pessoas, temendo constituir material que possa ser usado no futuro em seu desfavor, nos tais dossiês difamadores.

O fenômeno não ocorre somente em Babel. Outras nações convivem com problemas semelhantes e ainda piores: pobreza generalizada, surtos coletivos de histeria, suicídios e quadros depressivos são registrados por órgãos de saúde em patamares nunca vistos. Outras nações, em crise há mais tempo, já adotam formas de governo já esquecidas, geralmente com poder concentrado em uma ou algumas pessoas, ou sucumbiram ao radicalismo religioso, sepultando a distinção entre Estado e Religião.

Em 2027 nos encontramos no limiar de um rompante social. A população protesta agressivamente nas ruas, incendiando órgãos públicos e propriedade privada, sem qualquer mecanismo de controle. As Forças Armadas e o aparato policial foram dissolvidos em decorrência de consulta popular, que consideravam tais corporações violentas e desnecessárias, tendo sido os recursos redirecionados para shows artísticos e o entretenimento público. Há apenas os Conselhos Comunitários de Aconselhamento e Prevenção de Infortúnios, para controle social, embora ostente funções meramente pedagógicas. Não há ordem, somente o caos.

Distopia ou realidade?

Saberemos.