Tenho visto que, nos últimos
tempos, as pessoas estão muito cansadas de hipocrisia e de insinceridades, até
mesmo as mais leves.
O grau de tolerância com
discursos padronizados, onde não se sabe muito bem o que quer dizer o
interlocutor, ou mesmo os politicamente corretos, tem diminuído abruptamente,
como vocês bem devem estar percebendo.
Pensando nisso, lembrei de uma
história interessante...
Conheci um sujeito que sempre
teve esse tipo de intolerância a falsidades. Nascido em Sousa/Paraíba e morador
de Salgueiro/Pernambuco, Seu Camilo sempre foi caminhoneiro, transportando algodão
desde Cabrobó até o Ceará e, posteriormente, couro para a indústria coureira da
região do Vale do São Francisco (Curaça, Uauá, Belém do São Francisco, Paulo
Afonso). Hoje em dia, aposentado, em decorrência do seu pragmatismo e tino nos
negócios, é dono de extensas terras na região do Motoxó-Pajeú e cria ovinos e
produz derivados desses animais, como leite e queijo.
Cidadão ordeiro e conservador,
Seu Camilo sempre se notabilizou pela sua franqueza. Na verdade, há uma palavra
em inglês que melhor descreve sua personalidade, sem paralelo no português, que
é a palavra “bluntness”.
“Bluntess” é a
qualidade daquele que diz verdades cortantes sem se preocupar em criar arestas.
Muito presente nos irlandeses, é uma franqueza qualificada pela obsessão com a
precisão do discurso e despreocupada com o desconcerto ou o sentimento de
absurdo que a emissão da opinião pode causar.
Na verdade, essa característica
não é incomum no sertão nordestino, sendo até corriqueira na região de Sousa,
na Paraíba, cidade natal do personagem, como podem atestar os que têm amigos
por lá. No entanto, Seu Camilo a levava a extremos.
Sua obsessão pela exatidão das
informações resultou em diversas intrigas na cidade de Salgueiro. É que ele não
aceitava que lhe contassem informações abrandadas ou não exclusivamente e
precisamente verdadeiras.
Seu Camilo cumprimentava as
pessoas na rua conforme seu exato grau de intimidade. Nem mais nem menos. Havia
pessoas para as quais o “olá” era
suficiente, para outras era possível perguntas e assuntos mais delongados,
desde que o assunto fosse, de fato, interessante.
Acenava para todos e era
sempre cortês, mas não praticava small
talk com pessoas fora de seu ciclo restrito de amizade e se o fazia era
para dizer exatamente a verdade. Na verdade, não tolerava conversas ditadas por
convenções sociais, sem qualquer finalidade evidente ou utilidade. Se alguma
pessoa pouco conhecida lhe perguntasse sobre sua vida, ele respondia exatamente
o que pensa dela, sem nenhum abrandamento ou dizia que achava que a pessoa não
estava realmente interessada e que era desnecessário esse tipo de trato com
ele.
Prestigiado que sempre foi nas
cidades, sempre era convidado para dar algumas palavras em qualquer evento. Sua
esposa, Dona Marilda, no entanto, que conhecia a figura, sempre interceptava o
microfone e passava para outra pessoa. Sabia ela que, Seu Camilo, se fosse
instado a falar sobre alguma coisa teria extrema dificuldade em falsear
defeitos sobre o objeto discutido ou mesmo destacar apenas o lado positivo,
floreando seu discurso para ser agradável. É que ele sempre dizia exatamente a
verdade.
Em uma dessas ocasiões, Dona
Marilda foi beber um copo de água na festa, deixando brevemente o recinto, e o
microfone veio a cair nos colos de Seu Camilo. Era aniversário de uma sobrinha.
O discurso dele foi breve:
“Olha,
eu não tenho muito o que falar sobre a menina, porque não a conheço muito bem e
só vi umas duas vezes, já que a mãe dela se mudou para morar com aquele
andarilho barbudo que vive com um violão nas costas. É uma moça que parece não
ter nem qualidades nem defeitos. Nem é bonita nem é feia. Nem parece ser sabida
nem burra. Então, não há nada que eu possa falar”.
Não havia qualquer grosseria
em sua voz, nem qualquer pretensão de ofender. Ele apenas dizia o que realmente
achava sobre tudo. Era o jeito dele. Alguns compreendiam, outros não.
Curiosamente ele despertava muita admiração e simpatia de algumas pessoas,
inclusive, confesso, a minha. Admirava seu rigor com a própria sinceridade. Ademais,
era uma figura muito sóbria e com quem se podia conversar diretamente, sem arrodeios.
Certa feita, compareceu ao
velório de um famigerado comerciante da cidade, Osvaldinho dos Couros. Pessoa
de má reputação na cidade e inadimplente habitual. Novamente, Dona Marilda
dormiu no ponto e Seu Camilo foi chamado a discursar sobre o falecido. Alguns,
na plateia, gelaram.
Ele pensou alguns segundos e
disse, tranquilamente e sem prestar muita atenção na platéia, o seguinte:
“Rapaz,
conheci Osvaldinho em 1968, numa vaquejada que teve em Serra Talhada. Éramos
dois garotões no tempo. Ele corria boi num cavalo forte, alazão. Desde aquele
tempo eu nunca vi ele pagar uma conta em dia. De três carradas de couro que
mandei para ele, ele ainda me deve todas as três. Cobrei tanto até que cansei e
desisti. Agora parece que não vou receber mesmo. Nesses últimos tempos inventou
um negócio de artesanato que só serviu para roubar o pai. Deixou a família na
miséria. Gostava de tramóia que só ele. Vive, quer dizer, vivia pendurado num
emprego da Prefeitura. Era babão de político. Nunca bateu um prego numa barra
de sabão. Era um sujeito pabuloso, garganteiro e amostrado, além de fofoqueiro,
já que falava mal de Deus e o mundo. Sua participação na Terra num passa de uma
nota 5. Sorte teve a viúva, que pode viver sem ele a partir de agora.”
No final, deu-se conta que,
até para os padrões dele havia exagerado e disse, rapidamente, um “Que Deus o tenha”, dando dois passos
para trás e alinhando com o resto da plateia. Antes que se fizesse o silêncio
de espanto que normalmente se seguia aos discursos de Seu Camilo, Dona Marilda,
experiente nessas ocasiões, engatou um “Ave
Maria cheia de graça, o Senhor é convosco, bendita sois Vós entre as mulheres...”
no que foi seguida pelas carpideiras.