terça-feira, 10 de julho de 2018

Encontro Inusitado


Conversei brevemente com o Imperador Trajano ontem à noite. Acreditava estar dormindo, mas me vi desatando os arreios de seu cavalo, enquanto ele desmontava e passava em revista os soldados feridos em um acampamento militar.

Estávamos, se bem recordo, no que seria a atual Romênia, em enfrentamento às tropas dácias, no que presumo seja o ano de 107 depois de Cristo. Isso segundo posso agora estimar pela análise dos fatos que presenciei.

Lembro que chovia bastante e a lama parecia brotar entre as tendas militares de descanso. Em um campo absolutamente alagado, onde o musgo engolia meus pés, havia centenas de soldados feridos, rogando por proteção aos deuses. Entoavam, ao nosso redor, lamúrias e choravam copiosamente, de dor e aflição. O César, que caminhava pausadamente, observava complacentemente a cena.

A despeito disso, irrompeu certo frenesi. Com os integrantes da cavalaria chegara a notícia de que o Rei da Dácia, Decébalo, estava morto e, portanto, a campanha militar logo se encerraria.

E foi Tiberius Claudius Maximus, oficial da cavalaria romana, quem trouxe a ensanguentada cabeça do soberano, envolta em uma túnica vermelha, que pingava um sangue escuro e viscoso. Disse ao Imperador Trajano que Decébalo havia tirado a própria vida, cortando com a espada o próprio pescoço, quando se viu cercado pelos cavaleiros romanos.

Coube a mim receber cuidadosamente a nobre fronte das mãos de Tiberius e guardá-la em um baú, a ser remetido à Roma, já que o Imperador demonstrou certa indisposição em tocá-la, tendo indicado com a mão para que eu cuidasse do sinistro troféu.

Deu ordens, em seguida, para que se procurasse pelos restos mortais do finado soberano, com o objetivo de que lhe fosse providenciado um enterro com dignidade compatível com a função por ele exercida. Virou-se, enquanto retiravam sua armadura.

Encerrado o penoso dia no front de batalha com a alvissareira notícia, recolhemo-nos todos à tenda imperial. Nela, fomos recebidos com frutas frescas da região e um vinho de excelente qualidade. Foi reservada ao Imperador a companhia de belas donzelas da região.

Findo o jantar, tratou o César de resolver as questões de política pendentes, dialogando com Senadores que acompanhavam a campanha militar. Pude escutá-lo vaticinar que anexaria, em breve, a região compreendida pelo Império Parta, correspondente à Armênia, Assíria e Mesopotâmia. Parecia exercer considerável influência sobre os reconhecidamente traiçoeiros aristocratas.

Confiou a mim, soldado da guarda imperial e, aparentemente, seu ajudante de ordens, que providenciasse a desmobilização do acampamento e que enviasse mensageiro à Roma e ao resto do mundo, contando sobre a acachapante vitória sobre os dácios. Recomendou-me pressa e precisão no texto a ser redigido.

Disse-me, como em despedida, olhando em meus olhos, que eu viveria em novo século e milênio para ver que o Império Romano chegaria com ele à sua máxima extensão territorial e esplendor. Contou, também, que não haveria outro governante, nos seguidos séculos, que trouxesse, a partir da lucidez e temperança, maior glória ao Império dos Impérios. Rememorou-me a lição de Horácio: “Est modus in rebus”, enquanto desaparecia. 

...

Ofegante, acordei.

(...)

Marco Úlpio Nerva Trajano (em latim: Marcus Ulpius Traianus; 18 de setembro de 539 de agosto de 117) nasceu em Itálica (atual Santiponce), na Bética, no sul da Hispânia, perto de Híspalis (depois Sevilha) em 53 d.C. Foi imperador romano de 98 a 117. Durante sua administração, o Império Romano atingiu sua maior extensão territorial graças às conquistas do leste. Trajano também é notado pelos seus extensos programas de obras públicas e as políticas sociais implementadas durante o seu reinado.
É considerado por muitos romanos da época e por alguns historiadores como o maior dos imperadores romanos.
A titulação completa de Trajano no momento de sua morte era:
Imperator Caesar Divi Nervae filius Nerva Traianus Optimus Augustus Germanicus Dacicus Parthicus, Pontifex maximus, Tribunicia potestate XXI, Imperator XIII, Consul VI, Pater patriae

  

*Texto explicativo e imagem retirados da Wikkipédia e aqui reproduzidos sem fins lucrativos. A primeira imagem diz respeito a “A Coluna de Trajano”, monumento em Roma construído sob a ordem do Imperador Trajano, pelo arquiteto Apolodoro de Damasco em comemoração às vitórias das campanhas militares contra os dácios. A segunda imagem mostra a extensão do Império Romano durante o governo de Trajano.

segunda-feira, 9 de julho de 2018

Recordações




A gravidade é uma das quatro forças fundamentais da natureza, em conjunto com o eletromagnetismo, a força fraca e a força forte. Ela não pode ser vista em concreto, mas é aferível cientificamente e facilmente demonstrada pelo peso que se pode observar nos objetos, que faz com que caiam ao chão caso sejam soltos.

Do ponto de vista cosmológico, a gravidade faz com que a matéria dispersa se aglutine, e que essa matéria aglutinada se mantenha intacta, permitindo dessa forma a existência de planetas, estrelas, galáxias e da maior parte dos objetos macroscópicos no universo.

...

Há alguns anos perdemos nosso avô Hermillo.

Vez ou outra me ponho a pensar sobre ele.

Já faz alguns anos que não nos vemos, embora sempre estejamos o escutando, pelas histórias que contamos e relembramos de sua vida. Somos, eu e ele, inclusive, colegas de profissão, embora ele não tenha chegado a saber disso.

É uma pena que eu era relativamente jovem quando de sua partida. Certamente nos compreenderíamos melhor, agora que sou adulto e posso ver o mundo de maneira análoga a que ele certamente via. Tivesse ele partido mais tarde, poderia eu (e meus familiares) tê-lo apreendido melhor.

Era um homem de uma memória invejável, que recitava de cabeça um abrangente catálogo de textos e poemas. Tinha bastante interesse em ciência e fazia observações curiosas e percucientes sobre aspectos interessantes da existência humana.

Era um sujeito que seria visto como excêntrico, em comportamento e predileções, e que guardava um atrativo mistério sobre sua personalidade, talvez por ser, de certo modo, pouco previsível, inclusive no agudo senso de humor.

Seu fanatismo por recordações era incompreendido por mim quando criança. Ao longo da vida, ele preencheu inúmeras paredes com fotografias de antepassados e textos históricos. Esse costume se intensificou à medida que envelhecia. Confesso que, quando criança, temia aquelas fotos antigas em preto e branco de pessoas já falecidas. Os textos, ao tempo, pela sua complexidade, eram pouco representativos para mim, a não ser as mensagens mais simples, como o “É não se fazendo nada que se aprende a fazer o mal” estampado em cima da televisão, que já compreendia perfeitamente, como um desestímulo ao ócio.

Um outro desses textos, de autoria de Abraham Lincoln e escrito em papel com aspecto de pergaminho, foi, inclusive, xerocopiado por meu pai e dado a mim de presente em moldura, guarnecendo, hoje, uma das paredes do meu gabinete. Trata-se de importante lição de respeito à natureza livre do ser humano e de civismo.

Agora que, mais maduro, vejo a vida com olhos parecidos com os dele, vejo que sua sanha em documentar e expor aquilo que ele achava importante era sua maneira de deixar para seus descendentes e conhecidos suas impressões e sua forma de ver o mundo, coisa que, aliás, também gosto de fazer quando aqui escrevo.

A aposição das tais fotografias dos antepassados eram homenagens rendidas aos entes queridos, que além de compartilharem sangue, material genético e origem comuns, ajudaram a escrever nossa personalidade e nos tocam, constantemente, com lições sobre a vida e exemplos, bons e ruins, como é próprio do comportamento humano.

Os tais textos históricos são, hoje, melhor compreendidos a cada vez que os leio, quando perco o olhar sobre um deles, entre uma ida e outra à sala ou quando abro a geladeira e eles lá estão revestindo a parede, aguardando nova leitura.

...

Percebo, hoje, que a influência por ele deixada não difere da influência da gravidade sobre os corpos celestes. Não pode ser vista, mas pode ser fortemente sentida e nos toca diariamente. Possui, também, o mesmo efeito aglutinador, mantendo junta a matéria de que somos formados, criando um conjunto finito e predominantemente coeso de corpos chamado família.



Melancholia


Esse é o título de um filme dinamarquês, dirigido pelo polêmico Lars von Trier. É estrelado por Kirsten Dunst (do filme "As Virgens Suicidas"), que interpreta uma melancólica noiva, abandonada pelo marido no dia seguinte ao da cerimônia de casamento e que, mergulhada em depressão profunda, se mostra absolutamente tranquila e impassível ante a iminente destruição da Terra em virtude da colisão com outro planeta, que se aproxima lentamente.

Tal apatia, na verdade, é um comportamento bastante observado nas pessoas que passam por episódios de depressão, que reagem com desapego, calma e desinteresse em relação a acontecimentos catastróficos. É um estado de letargia, de “tanto faz”, de não pertinência, que invade as pessoas que não têm perspectivas de felicidade em curto ou médio prazo.

Passada a eliminação da seleção brasileira na Copa do Mundo, temos notado um estado de desânimo nacional generalizado. Todo o lirismo, espírito de corpo e otimismo que cercam esses eventos foram subitamente substituídos por aquilo que a ninguém é dado desconsiderar por muito tempo: a implacável realidade.

Ela, que estava nos bastidores, como que um bicho à espreita, retorna, pulsante, febril e enérgica, às luzes do palco principal.

Se antes podíamos nos embriagar nas manchetes esportivas, nos papos sobre futebol e praticando o habitual escapismo moderno, consistente em se furtar ao clique em links de temas pesados, agora voltamos, inescapavelmente, à conhecida rotina.

Receber textões no whatsapp; ser interpelado em salas de espera de clínicas médicas para falar sobre o sombrio cenário político brasileiro; observar discussões entre transeuntes sobre temas de evidente desacordo moral, como aborto, legalização das drogas, machismo/feminismo; ser questionado sobre o seu voto nas próximas eleições pelo padeiro. Aconteceu: definitivamente, voltamos à nossa conhecida realidade.

Tanto que somos bombardeados por esses temas na nossa vida diária que acredito que precisávamos mesmo desse período de expurgo. Pena que durou tão pouco. Receio que tenha sido insuficiente para arejar nossas mentes. Com a derrota da seleção, perdemos nossa válvula temporária de escape.

Aturdidos, conformados e apáticos, voltamos à realidade.


*Imagem relativa ao material de divulgação do citado filme, reproduzida aqui sem fins lucrativos.