domingo, 23 de julho de 2017

O Cipião Africano


Sou Públio Cornélio Cipião, general romano. A história testemunhará o meu triunfo sobre os cartagineses. Trucidarei Aníbal e seu exército de mercenários e voltarei à Roma exortado como o grande Cipião Africano. Nasci da união de uma serpente oculta no ventre da minha mãe, que conversa comigo e me acompanha nas minhas realizações. Não sou o mais forte ou mais poderoso dos generais de Roma, tampouco sou o melhor orador desta infecta, porém pujante, República. O que me engrandece é o conhecimento sobre os homens. Sua natureza, suas fragilidades e seus devaneios.

Em que pese tenha tido recentes oposições políticas aos meus planos, já que Pompeius Aelianus defendeu, em Assembléia, que seguíssemos no enfrentamento das tropas cartaginesas mais próximas, rumei em direção ao sul. Considerei uma tolice sem tamanho a proposta de permanecer em disputas naquelas paragens, já que nossas forças estão na proporção de um para três em relação às deles. Além disso, no sul é onde estão a riqueza, as armas e reféns das forças cartaginesas, sendo seu domínio mais importante para as nossas pretensões no contexto geral da guerra.

Escrevo agora de Nova Cártago, triunfalmente tomada por mim. Um terrível banho de sangue. Não creio que aguardavam nossa chegada nesta região da costa mediterrânea de Hispânia. Havia apenas uma pequena guarnição cartaginesa nas posições defensivas desta cidade. A conformação geográfica do lugar e suas grandes muralhas eram, na verdade, seus importantes defensores. Aproveitei a maré baixa que me foi concedida por intervenção divina e pude ordenar, após a travessia de uma laguna, furtivamente, a escalada da muralha protetora da cidade, do que resultou a vantagem estratégica que decidiu o embate em nosso favor. Ordenei contenção aos meus comandados na sua costumeira sanha de pilhar a cidade e cavalgar suas mulheres.

Maximmus, meu ajudante de ordens, me trouxe uma bela donzela capturada durante nossa invasão. Tem silhueta angulosa e uma magnífica garupa, dessas próprias das mulheres ibéricas. Revestem tais formas uma pele branquíssima e um olhar altivo, pretensioso e destemido, incomum nas mulheres inferiores e, sobretudo, nas subjugadas em invasões militares. Trazida a minha presença, não se curvou nem desviou o olhar. Ao contrário, olhou-me firmemente nos olhos, como se contestasse a autoridade militar que a intervenção divina me concedeu sobre sua vontade. Sua intransigência me fez ferver febrilmente dentro da minha armadura, ainda fétida e encharcada de sangue ibérico da batalha campal. Delirei de luxúria e, curiosamente, não de ira.

Inquiri-a sobre suas origens. Disse-me ser celtíbera, secamente, sem o olhar complacente e rogativo de clemência com que tantas vezes me deparei nessas ocasiões. Despiu-se como que protocolarmente, olhando-me nos olhos. “Cumprirei o encargo que Vossa Excelência determinar se isso redundar na salvaguarda da minha família”, disse, reverenciando-me, com elegância, na sua túnica branca, levemente enlameada na altura dos joelhos, pelo que, presumo, tenha sido a prece que antecedeu a transposição do muro por nossa centúria. Permaneci imóvel no trono que violentamente e arbitrariamente ocupei, absorvido por seus gestos singelos e delgados e embebido no perfume que escapava dos seus ondulados cabelos castanhos. Senti-me arisco e forte e desejei possuí-la vorazmente e, mais que isso, cavalgá-la maliciosamente conforme manda a lendária tradição equestre de Celta.

Contive-me, no entanto. Ordenei que Maximmus fosse à aldeia procurar pelo senhor pai da donzela. Ele, aturdido ante a minha ordem e demonstrando espanto, pediu-me que repetisse o comando, para sua melhor compreensão. “Ordeno-lhe que procure o pai da donzela e traga-o à minha presença, imediatamente”, disse-lhe, em tom imperativo, ao que ele se retirou rapidamente, deixando a sala de comando. À donzela, que, nesse momento, estava igualmente confusa e cobria seu busto com os braços entrecruzados formando um anguloso “x”, ordenei que se dignasse a cobrir suas vergonhas e mandei que aguardasse pela chegada do seu pai. Momentos depois, mostraram-se à minha presença Maximmus e o velho celtíbero pai da moça. Antes que pudesse me reverenciar, levantei-me do trono e dirigi-me rapidamente a eles, ocasião em que, unindo as mãos de pai e filha, devolvi-lhe, intocado, seu precioso tesouro, dizendo-lhe: “Pela glória de Roma e harmonia das populações ibéricas, devolvo-lhe, senhor, sua amada filha”. Disso seguiram-se o choro e a gratidão de ambos, que se puseram aos meus pés, agradecendo o gesto piedoso.
       
Tal gratidão aproveitou aos cofres da nossa empreitada, já que se tratava de rico proprietário de terras, que, em sinal de respeito e consideração, somou vultosas quantias que servirão para engrossar as fileiras do esforço militar romano e depositou trigo para alimentar nossos destemidos guerreiros. Chegou-me ao conhecimento, ainda, que a donzela estava prometida a um jovem comandante de nome Alúcio, que havia sido aprisionado durante a nossa conquista. Imediatamente determinei sua libertação e entreguei-o solenemente à sua agora esposa em ato público que celebrou simbolicamente a união das populações ibéricas e reforçou a legitimidade da nossa presença na região, facilitando a adesão dos nativos aos nossos propósitos. Fui reverenciado por sinos durante três dias seguidos.
       
Os anos da minha curta existência estão passando e vejo que mais importante que força física e coragem são o comportamento temperante e a compreensão sobre os homens. Eles, e mais precisamente, seus corações, devem ser os destinatários da nossa atenção e objeto das nossas conquistas. A espada com que lhes sangro o peito deve servir, também, para condecorá-los quando se dignem a unir-se a nós. Devemos-lhes respeito por sua coragem na batalha e por assentirem com nossa presença nas suas casas. Sem eles, sem esses homens a quem hoje subjugamos, seremos sempre ovelhas cercadas por um matilha de lobos. Seremos um castelo de cartas frágil, a ser destruído por qualquer ventania. Com a adesão e respeito dos povos conquistados somaremos as forças que, sob minha liderança, destruirão Aníbal e incendiarão Cártago. Escreverei meu nome na história e, no longínquo século XXI, em terras que hoje desconhecemos, serei lembrado e reverenciado como artífice de uma civilização que ditará por milênios as bases da convivência entre os homens.

A imagem acima, reproduzida sem fins lucrativos e assegurando os direitos reservados, é uma reprodução da obra  "Clemência de Cipião", de Giovanni Bellini, que está depositada na Galeria Nacional de Arte, em Washington D.C.




quarta-feira, 3 de maio de 2017

Bate-Pronto


Tenho me tornado, cada vez mais, fã instantâneo de entrevistados que respondem sincera e diretamente às perguntas dos repórteres.

Isso porque as entrevistas, hoje em dia, são absolutamente previsíveis e, portanto, enfadonhas. Há respostas padronizadas, que, dadas recorrentemente da mesma forma e no mesmo tom, tornam indignas de atenção tais empreitadas jornalísticas.

Os jogadores de futebol, por exemplo, sempre respondem, quando derrotados no jogo, que “o time jogou bem, fez o possível, criou muitas oportunidades, mas, infelizmente, não saiu com a vitória” e que “futebol é mesmo assim e que vão trabalhar com o professor, durante a semana, para sair com melhor resultado”.

O político está, em geral, sempre em cima do muro, tentando desagradar o mínimo possível cada eventual segmento do seu eleitorado. Usa expressões genéricas e alude a situações em abstrato. Nunca diz muita coisa, apesar de falar muito.

Esses são apenas exemplos e usei as categorias que me vieram à mente no momento. Aludir somente a políticos, nesse momento, seria injustiça e desleadade.

Na verdade, todos, e talvez eu mesmo já o tenha feito (pela prudência recomendada pelo ofício e não por vontade própria – defendo-me), demonstram essa tendência em entrevistas. Estamos todos ficando acostumados a falar muito e bonito para não dizer nada.

Tais respostas, geralmente, são politicamente corretas e socialmente aceitáveis. Diz-se aquilo que não vai causar muitos problemas. Ocorre que, para não causar problemas ou para não desagradar a ninguém, não se pode dizer quase nada, o que gera um déficit de conteúdo incrível nessas entrevistas.

Em breve exceção a esse modelo, vi (em um portal de notícias da Internet) que um advogado, questionado sobre se as recentes decisões do Supremo Tribunal Federal poderiam indicar a libertação de seu cliente, respondeu brevemente: “o advogado que acha alguma coisa sobre um juiz é imprudente”.

Não que a resposta tenha muito conteúdo. Na verdade, o próprio advogado, deliberadamente, seguiu a ideia de prudência que apresentou e, portanto, evitou se comprometer com alguma opinião (o que é perfeitamente natural na situação).

O interessante foi que falou de forma direta e elegante, em vez de iniciar um discurso interminável para dizer em muitas palavras o que pode ser dito, com clareza, e de forma simples.

Aliás, Ludwig Wittgenstein, filósofo austríaco naturalizado britânico, uma vez disse, muito precisamente, que: “o que se pode dizer pode ser dito claramente; e aquilo de que não se pode falar tem de ficar no silêncio”.
Interessante que recordei de uma célebre história de um Desembargador do Tribunal de Justiça da Paraíba que, por ocasião das Eleições ocorridas no Estado, atuava como Presidente do Tribunal Regional Eleitoral e, portanto, coordenava o processo eleitoral à época.
Dizem que, na véspera da realização das Eleições, foi perguntado por um repórter local sobre o que faltava para que o pleito eleitoral pudesse ocorrer normalmente.
Inteligentemente e sem perder o bom humor, a pergunta foi assim respondida: “falta apenas a Terra dar uma volta em torno de seu próprio eixo”.
Reposta sábia, direta e elegante, que Wittgenstein certamente aprovaria.




*imagem retirada (sem intuito de lucro) de http://lilieducacaofisica.zip.net/images/chute.jpg














segunda-feira, 20 de março de 2017

Círculo

Seres vivos que somos, nascemos e, eventualmente, morremos. Temos, portanto, início e fim.
Tudo ao nosso redor parece ter, também, início e fim. Os demais seres vivos, os relacionamentos interpessoais, os dias do ano: vejam se tudo ao nosso redor não começa e termina, de uma forma ou de outra (bem ou mal).
Talvez em função disso (por estarmos acostumados com essa perspectiva de começo-término), costumamos questionar sempre a origem e o fim das coisas, ponto de partida de onde derivam as mais variadas perguntas, tais como: quando começou o Universo, porque se iniciou a vida e quando terminarão todas as coisas... Essa é, afinal, a tal perspectiva teleológica de Aristóteles.
Veja que, para nós, seres humanos, é normal surgirem essas indagações, porque somos seres finalísticos, sempre em busca de um objetivo e sentido em tudo. Afinal, tudo que nós criamos tem, de uma forma ou de outra, além de início e fim, alguma finalidade. Somos pragmáticos e é natural que procuremos por sentido para as coisas. Mas... E se não há início nem finalidade para tudo?
A reflexão que proponho hoje é: e se o Universo, de fato, não tem fim, nem começo. E se ele apenas existe e sempre existiu sem qualquer razão subjacente?
Platão dividia o mundo entre o sensível e o inteligível, isto é, entre aquilo que nossos frágeis sentidos podem apreender e aquilo que, no campo das ideias, pode ser idealizado (depurando a enganação dos nossos sentidos).
Em função da fragilidade dos nossos sentidos, somos levados, habitualmente, a conceber o Universo como produto necessário de uma relação causal, onde uma causa gera uma consequência, onde há, necessariamente, um fim e um começo.
Ocorre que essa visão é, como deixei entrever, essencialmente humana. Os animais apenas existem. As pedras apenas rolam. O musgo cresce, indiferente, nas paredes úmidas. A natureza parece não ter qualquer compromisso com objetivos.
Repare que aquilo que, para nós, é a morte de uma planta, nada mais é, para a natureza, do que a transformação de matéria em energia, de um ponto de vista físico, ou uma sequência de reações químicas, de uma perspectiva química.
O decesso de um ser vivo, para a natureza, não é seu fim, tampouco seu início. É apenas uma parte de um ciclo maior, onde restam conservadas ao final, em somatório, a matéria e energia envolvidas no processo.
Assim, analisando a natureza sob o viés do inteligível, vemos que ela poderia muito bem ser melhor representada por um círculo do que por uma reta, porquanto, ao contrário da reta, ela parece não ter fim nem começo, bem com parece ser um todo harmônico em constante transformação. E há uma lei da Física que demonstra muito bem isso. É a lei da conservação da energia, segundo a qual, na natureza, em um sistema fechado, nunca há perda de energia; ela apenas se convola em outras formas de energia, conservando-se o quantitativo total envolvido no processo. Isso acontece, por exemplo, quando a energia potencial de uma mola se transforma em energia cinética.
Sendo assim, abstraindo o raciocínio derivado da experiência humana, que é produto desse limitado mundo sensível, somos levados a questionar que pode não haver, propriamente, um fim (em ambos os sentidos) para as coisas, tampouco início. Pode ser que as coisas, assim como nós, apenas existam e que todos e tudo sejamos parte de um interminável ciclo, aparentemente harmônico, e regulado por regras bem definidas, que simplesmente existem desde sempre.
Eu não tenho a resposta para isso, nem pretendo ser capaz de chegar a ela na minha insignificante existência. Talvez você, leitor, tenha as suas. Aliás, imagino que cada pessoa, ainda que não reflita muito sobre isso, tem uma percepção própria ou, ao menos, um feeling sobre essas questões. A princípio, não considero tais noções incompatíveis com a existência de uma ordem superior, que tenha estabelecido as leis físicas que regem nosso Universo, e que pode, também, sempre ter existido. Muitos cientistas contemporâneos, inclusive, compartilham dessa visão.

Talvez, quem sabe, eu ou você possamos chegar a tais respostas em algum momento, lugar ou dimensão (inclusive poderemos rir dessa nossa atual ignorância) ou pode ser que simplesmente não sejamos dignos de tal conhecimento, assim como a poeira abaixo do nosso sapato não tem ciência de quando será pisada. Afinal, para os que não sabem, nesses últimos 12.000 anos, descobrimos não só que não somos o centro do Universo, mas que somos parte de uma das centenas de milhares de espécies de seres vivos que já moraram em um pequeno planeta que orbita uma pequena estrela, numa zona absolutamente periférica de uma dentre bilhões e bilhões de outra galáxias em um Universo aparentemente em expansão.

Decisão Salomônica

Uma celeuma envolvendo um galo vem movimentando uma cidade da região do Cariri nordestino. Por questões de proteção à intimidade e até para me proteger de pedidos de indenização, não vou revelar a verdadeira identidade dos partícipes, embora merecessem o devido reconhecimento por ilustrarem essa interessante história.
Tudo começou com uma corriqueira transação comercial de cidade interiorana: a compra de um galo...
O feriado de São João se aproximava na pequena cidade do interior paraibano e Dona Miúda foi à barraca de Seu Bonifácio, conhecido comerciante da urbe, para dar uma olhada nas mercadorias que ele tinha para vender.
Analisando os produtos por baixo do seu olhar clínico de septuagenária nordestina, passou ao largo dos maxixes e melancias, aparentemente velhos, para debruçar-se sobre os galos expostos à venda na barraca.
Após muito observar, acabou por escolher um belo exemplar de galináceo, de peito estufado, canto grave e cores radiantes. O anúncio em cima da gaiola dizia: “galo valente”.
Pois bem. Pago o preço, transportou o galo para casa, preocupando-se em isolar bem os esporões para evitar acidentes, afinal, segundo ela, “um bichão desse deve ser brabo feito cavalo de vaquejada”.
Devidamente instalado em seu novo lar, o galo, logo apelidado de Fifão, começou a desbravar o terreiro. Assim que lá chegou, incontinenti, começou a fazer muitas amizades. A sociabilidade, aliás, era seu traço mais marcante; nada daquele tom agressivo e falastrão dos galos comuns. Fifão era um galo gentil e extremamente polido. Segundo Dona Miúda, era um galo que, de tão asseado e educado, ciscava de lado para não ter o perigo de sujar alguém atrás.
Os dias se passaram e Fifão conquistou a simpatia de todos, inclusive dos vizinhos. Isso porque Fifão tinha tanta consideração pela vizinhança que somente cantava às 06:00h para não prejudicar o sono alheio. Seu canto, aliás, despertaria inveja em grandes tenores do século XX, como Bocelli e Pavarotti.
Ocorre que, em que pese o notório carisma do animal, Dona Miúda não estava contente com ele. É que Fifão, a par da amizade com os demais galináceos do terreiro, não se aproximava mais intimamente das galinhas, não manifestando o menor desejo de ser pai.
Não se sabe se por temer a responsabilidade do encargo da paternidade, ou por outras razões desconhecidas do povo da cidade, mas o fato é que Fifão evitava um envolvimento mais sério com qualquer outra galinha.
Vendo seu projeto de produzir pintos escoar pelas suas mãos, Dona Miúda logo se revoltou com o vendedor do animal, Seu Bonifácio, e, tendo perdido a paciência por completo, foi ter com ele uma conversa séria, para pedir o ressarcimento do que gastou ou um abatimento proporcional do preço, pois, segundo ela, “Fifão teria vindo com defeito de fábrica”.
Não tendo, Seu Bonifácio, anuído com a devolução de qualquer valor, instaurou-se o litígio que, como não poderia deixar de ser, veio a ser submetido a Dr. Salomão, antigo e respeitado magistrado da Comarca...
Dr. Salomão, de uma técnica e sobriedade marcantes, iniciou sua abordagem mental considerando tratar-se de vício redibitório (expressão jurídica que indica que o produto foi vendido com defeito não perceptível a olho nu). Pensou ele, internamente: “o caso parece simples, pois o galo teria a função de reproduzir e, não tendo cumprido esse desiderato, estaria caracterizado o vício do produto, de forma a autorizar, no mínimo, uma compensação ao consumidor”. Sendo essa sua premissa inicial, começou a ouvir os demais presentes na ocasião...
Dona Miúda insistiu que teria sido lesada, pois nunca imaginou que o galo que adquirira pudesse não ter interesse nas galinhas e dessa falta de entusiasmo adviria seu enorme prejuízo, já que sua produção de pintos estava completamente parada.
Seu Bonifácio, a seu turno, visivelmente irritado por estar na condição de réu, defendendo sua causa sem advogado (já que fora Vereador por um tempo e sabia usar as palavras), levantou o seguinte argumento:
̶ Meritíssimo, eu nunca prometi a Dona Miúda que esse galo fosse ser, por assim dizer, namorador, nem que ele tivesse qualquer vontade de ser pai. O que prometi foi um galo valente e não há nada que contradiga isso. Até onde sei não houve qualquer covardia por parte do galo. Não posso aceitá-lo de volta porque já gastei o dinheiro da venda dele e, além disso, é difícil demais para um galo já crescido mudar de terreiro.
Após ponderar alguns segundos, Dr. Salomão, como é do costume judiciário, passou a palavra ao Ministério Público para que pudesse opinar sobre o caso.
O membro do Ministério Público atuante no caso, Dr. Jorge, era um sujeito erudito, recentemente chegado da França, onde havia participado de extenso programa de mestrado sobre os direitos dos animais, o que talvez tenha influenciado seu parecer, no seguinte sentido:
̶ Excelência, com a devida vênia ao representante da parte autora, considero que a pretensão autoral parte de uma premissa equivocada. É que Fifão não pode ser considerado produto. Na verdade, tem ele, se Vossa Excelência me permite a inovação, prerrogativas próprias de animal. É ele sujeito de direitos e não objeto de um direito titularizado pela autora. Tem ele, portanto, a plena faculdade de se relacionar ou não com outros animais da sua ou outra espécie, tendo ou não o desiderato reprodutivo.
Concluiu dizendo, ainda, que:
̶ Se, eventualmente, o que não parece ser o caso, Fifão quisesse se relacionar com uma ou mais galinhas, sem assumir o encargo da paternidade, a detentora do animal deveria lhe proporcionar meios seguros e eficazes de assegurar a satisfação do seu interesse, assim como deve permitir-lhe, no presente caso, que não se relacione com qualquer outro animal. Sugiro que Vossa Excelência rejeite o pedido autoral.
Dr. Salomão, visivelmente estupefato com a complexidade que havia tomado aquele caso que, a princípio, parecia banal, e enfadado com o severo dia de trabalho, após refletir alguns segundos, decidiu proferir sentença oral, que foi imediatamente transcrita pelo escrivão, nos seguintes termos:
“Tudo bem visto e examinado, considerando a extensão da pauta de audiências da tarde de hoje e que se achega o dia da confraternização junina deste Juízo, este Magistrado decide por bem comprar o galináceo sob discussão nos autos, pagando à parte autora o valor correspondente ao de sua aquisição.
Em função disso, declaro a perda superveniente do objeto discutido nos autos e, por consequência, resta EXTINTO O PROCESSO SEM RESOLUÇÃO DO MÉRITO, na forma do Código de Ritos.
Em face do reduzido proveito econômico da demanda, ficam os honorários advocatícios substituídos pelo convite aos envolvidos para comparecimento à citada confraternização, que ocorrerá amanhã, dia 22 de junho, às 13:00h.
Sem custas.
Proceda a copeira ao preparo do animal.
Publique-se. Registre-se. Partes intimadas em audiência.”
No fim, todos ficaram satisfeitos, não houve recurso e o processo foi arquivado.
  

terça-feira, 7 de março de 2017

Impressões sobre o Tempo

Costumamos medir e sentir o tempo como o palco onde há um desenrolar sucessivo de eventos, que evoluem sequencialmente desde um ponto inicial, passando linearmente por pontos intermediários até um ponto final.
O tempo, na experiência cotidiana dos seres humanos, é constante e absoluto, isto é, é o mesmo para qualquer um, em qualquer lugar. Ainda que adotemos, por questões logísticas e de conveniência, referências diversas, como fusos horários ou horários de verão, o fato é que essas diferenças se dão dentro da mesma escala de tempo, que não difere nem para mim, nem para você, nem para ninguém.
Assim, segundo nossa limitada percepção sensorial, cada unidade de tempo parece ser igual, estejamos aqui ou do outro lado do mundo. Nesse sentido, ainda que no Japão seja noite enquanto no Ocidente é dia (portanto, horários diferentes), uma hora no Japão é exatamente o mesmo que uma hora aqui.
Com efeito, se eu comprasse dois relógios suíços, ajustasse os ponteiros de ambos na mesma hora, ficasse com um deles, e desse o outro a você, que estaria, hipoteticamente, partindo em viagem à China por uma semana, apostaríamos que, não havendo qualquer reajuste nos ponteiros dos relógios, ambos deveriam assinalar a mesma hora quando do fim da viagem (isso se, de fato, os relógios suíços são tão bons como se costuma dizer – alguns ressalvariam).
E acertaríamos nessa análise, já que a tal viagem hipotética foi realizada dentro do nosso planeta. De fato, segundo a atual compreensão científica, não há motivos para crer que se observaria diferença entre a hora apontada pelos ponteiros dos relógios nesse deslocamento na superfície da Terra. Certamente isso é até corriqueiro e confirmado por muitos viajantes.
Ocorre que os estudos científicos modernos desmentem essas impressões quando alteramos levemente as circunstâncias que envolvem o exemplo dado. Isso porque, segundo a Teoria da Relatividade, não existe um padrão único de tempo, como um pano de fundo imutável e absoluto onde acontecem todos os eventos do universo. Ao contrário: o tempo seria uma noção relativa, que varia de acordo com cada espectador. Para Einstein, o pai da Relatividade, cada personagem tem seu próprio tempo.
Dessa forma, esse mesmo exemplo do relógio teria resultado diverso se você viajasse, não para China, mas para distâncias maiores para fora do planeta, como, por exemplo, numa viagem interestelar ou para qualquer outro lugar consideravelmente mais distante do núcleo da Terra, desde que nós (que somos personagens do exemplo dado) estivéssemos sujeitos a diferentes patamares de força gravitacional ou nos deslocássemos em velocidades incrivelmente diversas.
Stephen Hawking, aquele famoso cientista que inspirou o filme biográfico “A Teoria de Tudo”, utiliza o Paradoxo dos Gêmeos para explicar esse fenômeno. Segundo ele, se dois gêmeos (obviamente de mesma idade) combinassem e implementassem a ideia de que um partiria numa viagem interestelar à velocidade próxima à da luz enquanto o outro permaneceria aguardando na Terra, o tempo passaria mais rápido para aquele que aqui permaneceu do que para o que deixou o planeta, de forma que o gêmeo viajante retornaria mais jovem do que seu irmão. Esse conceito é usado também no brilhante filme “Interestelar” (dirigido por Christopher Nolan), onde o astronauta interpretado por Matthew McConaughey volta de uma viagem intergaláctica por um buraco negro e ainda, jovem, se depara com sua filha idosa prostrada em uma cama.
Não aprofundarei a questão do porquê a noção de tempo é relativa e varia de espectador a espectador porquanto a questão é de alta complexidade e foge ao objeto do texto (tem a ver com a força gravitacional que a matéria exerce sobre a energia da luz e sua frequência – recomendo a leitura do livro “Uma Breve História do Tempo” para quem deseja aprofundar). O fato é que, ainda que possam parecer absurdas para nossa limitada compreensão, tais ideias vêm sendo confirmadas por cálculos matemáticos e já são implementadas na prática, sendo consideradas as tais diferenças de tempo entre espectadores nos nossos modernos sistemas de navegação.
A questão que ora trago para reflexão é que, embora não tenhamos, concretamente, diferença de tempo entre espectadores na Terra (relógios ajustados à mesma hora aqui sempre marcarão a mesma hora desde que permaneçam na superfície terrestre), já experimentamos, cotidianamente, percepções temporais diversas, a depender do espectador.
Ilustro essa ilação com um exemplo. Certo dia, minha mãe me contava que, em tom crítico e de repreensão, disse a seu neto (meu sobrinho, portanto) que ele teria que estudar muito para ser rico se quisesse comprar todas as coisas que deseja e pede diariamente. Ela me narrou, ainda, que ele, após refletir alguns segundos e tomado pela curiosidade, retrucou, perguntando se, caso estudasse muito, poderia ser rico ao completar seis anos de idade. O detalhe é que ele, hoje, tem cinco anos.
A constatação que tiro desse questionamento é a de que a percepção de tempo dele é diversa da minha e da de muitos de vocês e a de que um ano para ele é uma eternidade. E isso é muito razoável, considerando o espectador do caso. Ora, vejam se não faz sentido para quem tem cinco anos acreditar que um quinto de sua existência é um considerável espaço de tempo, suficiente, quem sabe, para que possa estudar, trabalhar e, em seguida, enriquecer. Considero uma hipótese plausível para uma criança.
Para nós, ao contrário, que já temos muitos verões nas costas e que passamos os dias ocupados com nossos afazeres, o período de um ano passa voando, sem que possamos sequer nos dar conta do quão rápido passou. Posso imaginar até que para os senhores de idade avançada o lapso de um ano deve representar ainda menos, sendo quase desprezível do ponto de vista cronológico.
O fato é que vejo aí diferenças gritantes e relatividade, não do tempo, mas da percepção que se tem sobre ele.
Esse fenômeno pode acontecer, ainda, sem que variemos o espectador. Nós mesmos temos diferentes impressões da passagem do tempo nas diferentes fases das nossas vidas. Fomos crianças como meu sobrinho e já tivemos dias de quarenta e duas horas. Hoje, e à medida que nos ocupamos de inúmeras atividades e envelhecemos, assistimos, impassivelmente, o tempo escorrer por nossas mãos numa velocidade absurda. Não sei vocês, mas quase não percebi a passagem do ano de 2016 e já o confundo com 2014 e 2015.
Outro exemplo de relatividade da percepção do tempo ocorre quando estamos sob o efeito da adrenalina. Todos que vivenciam situações de risco costumam dizer, depois de uma situação de pânico, que “tudo aconteceu tão rápido”. Eu, todavia, nunca concordava completamente com tais relatos porque sabia que a injeção de adrenalina acelera nossa percepção sensorial, fazendo com que raciocinemos mais rapidamente. Disso deduzia que o tempo deveria parecer transcorrer de forma mais lenta – e não o contrário.
Não obstante, diante da recorrência dos relatos, avaliei que devia haver algum razão subjacente para tal impressão e cheguei a uma conclusão provisória de que, provavelmente, o cérebro, nas situações de pânico, concentra seus esforços em escapar do risco de perecimento e não em registrar os acontecimentos, do que deve derivar a sensação de que o momento foi breve, quando, na verdade, apenas foi breve a lembrança do momento. (Interessante que tive essa ideia refletindo sobre os dias de ressaca, em que temos a impressão de que a noite foi curta, embora, na verdade, tenha sido longa e pouco registrada em nosso cérebro).
Outra derivação dessa relatividade da percepção do tempo foi nos dada por esse mesmo sobrinho quando questionado quantos anos minha mãe (um jovem senhora quinquagenária) estaria completando agora no final de janeiro. Ele, sem pestanejar, e sem se preocupar com sentimentos alheios, respondeu: “Vovó vai fazer cem anos”.
Enfim, são tantas as reflexões sobre o tempo que corremos o risco de flertar com a loucura quando imaginamos todos os desdobramentos possíveis a partir do que descobrimos sobre ele (e o Universo, de um modo geral) nas últimas centenas de anos. Quem diria que nós, seres humanos, sairíamos da escura e fria noite das selvas africanas, iluminados apenas pela luz das estrelas, para questionarmos, com pequeníssima, mas consistente base científica, o início e o fim do nosso tempo.
Findando (pois o assunto deixou de ser leve), eu não sei qual será a futura concepção científica sobre o tempo tampouco a percepção que esse meu sobrinho terá sobre esse mesmo tempo quando atingir a fase adulta, só desejo - e espero - que ele aprenda a medir as palavras até lá. 



quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Silêncio



Há um jargão popular que diz: “o silêncio nunca é uma má opção”. Eu, sinceramente, não consigo deixar de entendê-lo como verdadeiro.

Com efeito, na dúvida, silencie. Se você hesitou em dizer é porque seu cérebro está te ajudando e estendendo as mãos a você. Ele está apontando a inconveniência das suas palavras. Aceite essa ajuda. Seja agradecido.

Palavras dilaceram a carne crua e violentam a consciência das pessoas. Uma palavra mal posta agride mais que um soco. Por outro lado, um olhar ensina muito mais que um sermão.

Geralmente, arrependo-me não do que disse, mas do fato de ter insistido em dizê-lo. Para minha consciência, o conteúdo dito é irrelevante. Puno-me pela tolice de ter insistido em me pronunciar, pois, quando o faço, estou, conscientemente, violando uma regra de sabedoria milenar, que atribui o devido valor ao silêncio.

A verdade é que todos temos nossos defeitos e, portanto, é, de certo modo, uma variante da hipocrisia estarmos sempre tecendo juízos de valor sobre condutas e pessoas.

Além disso, corremos o risco da incoerência e, sobretudo, da inconsistência quando falamos muito. O resultado disso é a perda da credibilidade. Nada pior para um ser humano do que ter suas opiniões desprezadas por todos.

Enfim, a mensagem de hoje é: cuidado com as palavras, você poderá ser cobrado por elas.

Aliás, no mundo contemporâneo, em que tantos muito falam e a ignorância não é prerrogativa exclusiva de poucos, você corre o risco de ser considerado virtuoso apenas por prezar pelo silêncio. Chega a ser extravagante.


quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

Culpa dos humores


Contou-me um amigo juiz que, assombrado com a alta distribuição de processos ao seu gabinete em um determinado dia, decidiu trabalhar no fim de semana para reduzir o seu acervo de processos conclusos para sentença.

Chegando ao vazio e pacato Fórum de interior no domingo pela manhã, cumprimentou o segurança e tratou de se apressar em sentenciar um a um os processos que haviam sido colocados em seu gabinete por uma assessora.

Findo o dia, foi para casa satisfeito, já que tinha conseguido, ao menos, acabar com um das pilhas de processos que estavam em cima de sua mesa e, agora, já tinha, pelo menos, lugar para descansar seus cotovelos.

Chegando no dia seguinte, o local que havia esvaziado em sua mesa estava, novamente, preenchido por processos. Foi quando então ele abriu a capa dos primeiros processos da pilha para constatar se eram os mesmos do dia anterior ou se eram novos processos trazidos pela assessora, tarefa que concluiu com a certeza de que eram diversos, já que não se recordava nem das partes nem do conteúdo desses outros que lá estavam.

Decidiu, então, reiniciar a tarefa de examinar e sentenciar cada um deles.

Já quase finda a pilha de processos, compareceu à secretaria do Fórum o advogado de uma das partes de um dos tais processos requerendo vista dos autos em cartório (examinar o processo lá mesmo), pelo que a assessora perguntou ao juiz se esse feito em particular já havia sido sentenciado.

Olhando um a um os processos da pilha, o juiz, após analisar o último, respondeu que sim, que acabara de sentenciar aquele e que o advogado já poderia consultar o feito após a secretaria juntar a sentença aos autos.

Minutos depois, a assessora corre para o gabinete do juiz e diz:

̶  Doutor, não sei o que faço, o senhor devolveu o processo com duas sentenças na contracapa dos autos. Numa delas, o senhor deu ganho de causa ao cliente do advogado que está lá fora; na outra o senhor o condenou. O advogado está perguntando de qual sentença será intimado.

Ao que o juiz, surpreso por ter sentenciado o mesmo feito de forma diametralmente oposta  no intervalo de um dia, respondeu:

̶  Diga-lhe que prevalecem as sentenças proferidas em dia útil. O trabalho em finais de semana não faz bem ao humor de ninguém e não haveria de ser diferente comigo. Provavelmente incorri em erro ontem e não hoje.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

Toda ideia contrária à minha é absurda


Na minha primeira aula no curso de Direito, o professor escreveu no quadro a frase que dá o título a este texto. Após alguns segundos de suspense, começou a questionar qual a impressão de cada aluno sobre a referida sentença. Muitos tentaram responder; segundo lembro, acho que também tentei. Olhando para trás, todavia, e recordando do que foi dito, vejo que o professor, infelizmente, não conseguiu extrair de nós boas respostas. Na verdade, a ideia por trás da frase, em geral, não foi muito bem apreendida pelos alunos.

Tal insucesso pode ser atribuído à nossa inocência à época ou, o mais provável, ao fato de que é mesmo difícil para as pessoas, ainda depois de adultas, enxergarem como e em que proporção os juízos que fazemos sobre as coisas é influenciado pelo feixe de valores e ideias que acumulamos durante a vida e que a estranheza com a qual encaramos concepções divergentes da nossa deriva, não necessariamente, do completo absurdo de tais ideias mas do fato de terem sido gestadas por mentes fincadas num conjunto de valores muito distinto do nosso.

De fato, nossas predisposições e inclinações particulares, derivadas da nossa personalidade, da nossa formação cultural, do papel que desempenhamos na sociedade e de outras idiossincrasias turvam nossa objetividade analítica e dificultam que façamos uma avaliação mais científica das situações que nos são apresentadas e até que possamos apreender o processo de construção de ideias de pessoas com um mindset diverso.

Considerando isso, para evitar o risco da má-avaliação, qualquer reflexão séria deve partir, sem dúvidas, do conhecimento próprio, ou seja, de entender como essas circunstâncias especiais interferem no nosso processo de julgamento das teses que nos são submetidas.

Conhecendo esses aspectos, podemos sopesar (ou mesmo refrear) essas inclinações individuais para que nossas opiniões sobre assuntos em geral não sejam somente uma emanação da nossa forma de ver o mundo ou um pitaco da nossa personalidade e para que tenhamos um senso mais apurado (e linear) de correção moral e justiça, o que só podemos obter quando observamos o mundo por diversas outras cores, diferentes das nossas.

Alguns até traduzem essa ideia como uma espécie de exercício da empatia, ou seja, aquela ideia de se colocar no lugar do próximo para avaliar a situação. Isso não é, todavia, o que advogo nesse texto. Não se trata, propriamente, de se colocar no lugar do próximo, pois esse modo de avaliação está eivado do mesmo vício a ser combatido, que é o de analisar as questões partindo de um ponto de vista individual, peculiar e próprio.

Dou um exemplo de como é inadequado pensar dessa forma. Imaginem um juiz que adotasse essa forma de empatia e visse o processo judicial penal somente pelos olhos do réu. Não é difícil imaginar que, ainda que cercado das mais concretas e robustas evidências da prática criminosa, teria enormes dificuldades em condenar. Isso porque até os mais impiedosos assassinos tendem a imaginar-se de forma benevolente, até mesmo como vítimas, de modo que, analisando a situação sob esse viés, o magistrado se veria inclinado a aliviar a responsabilidade do réu pelo ato praticado.

A ideia que quero transmitir é a de não ver a situação sob um dos enfoques. É a de não ver a situação “pelo lado do mais fraco” ou “pelo lado do mais forte”, mas sim por múltiplos pontos de vista, sopesando e analisando a situação por diversas óticas complementares.

Antes de avançar nessa ideia, todavia, é necessário certo aporte teórico.

Hoje compreendemos, sem tergiversação científica, que os seres humanos tendem, ainda que inconscientemente, a fazer escolhas ou avaliar situações segundo o benefício direto ou indireto que lhes pode advir, ainda que esse bônus afete de maneira bastante remota a sua vida ou dos seus entes próximos.

Sendo assim, esse mindset de que falei, ou seja, esse feixe de ideias e valores que determina nossas escolhas está intimamente relacionado com o que consideramos interessante para o nosso proveito.

O filósofo americano John Rawls, visando contornar esse problema, qual seja, da dificuldade que nós, seres humanos, temos de avaliar situações objetivamente, desconsiderando nosso proveito próprio, propôs um artifício teórico conhecido como o véu da ignorância.

Disse ele que as escolhas dentro de uma sociedade só seriam adequadamente justas se todos responsáveis por essas decisões estivessem cobertos por um véu que lhes tirasse a ciência de quem, de fato, são na sociedade, ou de que papel desempenham no corpo social. Segundo ele, somente assim, poder-se-ia identificar que determinada decisão não derivou da busca, ainda que indireta, por algum proveito, ainda que remoto, mas sim de uma razão de ordem objetiva.

Tal solução tem cunho eminentemente teórico e serve de argumento para a construção filosófica desenvolvida pelo autor em sua obra. Não é (nem tem a função), contudo, de ser passível de aplicação na realidade, como método de julgamento, porquanto é impossível ao ser humano deixar, episodicamente, de ser quem é (com todas as implicações de sua personalidade, ideologia e visão de mundo) para tomar determinada decisão e retornar a ser o que sempre foi, reocupando seu lugar na sociedade.

Sendo assim, diante dessa inviabilidade (de vestir esse véu) e da limitada compreensão a que nós, seres humanos, estamos submetidos, resta a nós, se quisermos ter uma visão de moral e concepção de justiça mais aprofundadas, adotarmos a postura de estarmos sempre avaliando os motivos pelos quais temos inclinação por determinadas soluções, para que, sopesando o impacto da nossa individualidade sobre o que julgamos ou escolhemos, possamos chegar a soluções que envolvam uma noção do justo mais balanceada pelas diversas matizes que compõem a sociedade ou mais próxima de uma ideia conceitual de justiça absoluta (inatingível?) e, portanto, distante de soluções casuísticas e do relativismo determinado pela adoção de um ponto de vista singular.

Somado a esse freio das nossas paixões e afinidades, é relevante submeter as nossas preconcepções sobre o tema a diversos pontos de vista, como se submetêssemos essas questões a uma multiplicidade de cidadãos dotados de apurado senso e integrantes das mais diversas categorias de pessoas existentes na sociedade.

Esse exercício pode ser imaginário, ou seja, refletirmos como várias pessoas, isoladamente, observariam aquela situação, ou decorrer do necessário e saudável contato com os diversos elementos que compõem a coletividade, afinal de contas, difícil acreditar numa razoável concepção do justo ou moral obtida apenas pela reflexão individual e solitária (ainda que seja essa fundamental).

Esse processo, que envolve profundo autoconhecimento, nos dá ferramentas para que possamos chegar a soluções mais justas de um ponto de vista mais coletivo e menos individual, afinal a correção ou incorreção de uma tese ou mesmo a justiça ou injustiça de uma situação nunca pode ser avaliada por um espectro de individualidade, segundo a ótica de uma determinada mente, sob pena de termos concepções frágeis e unilaterais do que é correto, justo ou moral. Vale recordar que a caça pode soar absolutamente injusta para o cervo, mas nunca terá essa conotação para o leão.

Em termos práticos, identificadas nossas predisposições, é relevante que tentemos abordar as questões que nos são submetidas pelos múltiplos vieses que se desvelam, o que envolve, inclusive, questionarmos a nós mesmos, ou advogarmos teses contrárias às nossas, para alcançarmos uma solução justa ou moral, não mais de um ponto de vista exclusivamente individual, não apenas por um filtro, mas de um ponto de vista conglobante.

Cuida-se de tarefa não muito simples mas que pode ser sintetizada pela ideia de não enxergar as situações somente pelos nossos olhos, mas pelos diferentes olhares existentes no seio da sociedade. Vendo a vida nesses termos, veremos que a opinião contrária, geralmente, não é absurda; ela só deriva de outra forma de conceber o mundo.


sábado, 21 de janeiro de 2017

Caminho





Pelo gélido e lúgubre caminho cruzou o discreto cavaleiro da Justiça.
Despido das suas vestes talares, sucumbiu àquilo que a todos une e a ninguém perdoa.
Permanece ainda silente, compenetrado e sério; desta feita, no impassível repouso.
Vitimado pela irracionalidade do destino, é, agora, não o juiz, mas o réu de uma sentença irrecorrível.

(...)

A qual outro homem moderno caberia empunhar tão honrosamente a libra e o gládio?
Quais e quantos outros serviriam tão solenemente ao seu circunspecto propósito?
Quem, às vésperas da obscuridade, poderia trazer à Babel a cautela dos anciãos e a solidez do ósmio?

(...)

Solte esta pesada caneta, Forseti. Descanse.
Não tens mais o dever do sopeso.
Tu, na verdade, não nos deixas, pois viverás na memória dos teus.
A teu caminho seguirão outros, imbuídos da tua prudência e rigor.
E se, por alguns, fores esquecido, teus escritos falarão por ti, reverberando lições aos jovens.
Viva, agora, para sempre.

 
*Em memória de Teori Albino Zavascki