Sou Públio Cornélio Cipião, general romano. A
história testemunhará o meu triunfo sobre os cartagineses. Trucidarei Aníbal e
seu exército de mercenários e voltarei à Roma exortado como o grande Cipião
Africano. Nasci da união de uma serpente oculta no ventre da minha mãe, que
conversa comigo e me acompanha nas minhas realizações. Não sou o mais forte ou
mais poderoso dos generais de Roma, tampouco sou o melhor orador desta infecta,
porém pujante, República. O que me engrandece é o conhecimento sobre os homens.
Sua natureza, suas fragilidades e seus devaneios.
Em que pese tenha tido recentes oposições políticas
aos meus planos, já que Pompeius Aelianus defendeu, em Assembléia, que seguíssemos
no enfrentamento das tropas cartaginesas mais próximas, rumei em direção ao sul.
Considerei uma tolice sem tamanho a proposta de permanecer em disputas naquelas
paragens, já que nossas forças estão na proporção de um para três em relação às
deles. Além disso, no sul é onde estão a riqueza, as armas e reféns das forças
cartaginesas, sendo seu domínio mais importante para as nossas pretensões no
contexto geral da guerra.
Escrevo agora de Nova Cártago, triunfalmente tomada
por mim. Um terrível banho de sangue. Não creio que aguardavam nossa chegada
nesta região da costa mediterrânea de Hispânia. Havia apenas uma pequena
guarnição cartaginesa nas posições defensivas desta cidade. A conformação
geográfica do lugar e suas grandes muralhas eram, na verdade, seus importantes
defensores. Aproveitei a maré baixa que me foi concedida por intervenção divina
e pude ordenar, após a travessia de uma laguna, furtivamente, a escalada da
muralha protetora da cidade, do que resultou a vantagem estratégica que decidiu
o embate em nosso favor. Ordenei contenção aos meus comandados na sua
costumeira sanha de pilhar a cidade e cavalgar suas mulheres.
Maximmus, meu ajudante de ordens, me trouxe uma
bela donzela capturada durante nossa invasão. Tem silhueta angulosa e uma
magnífica garupa, dessas próprias das mulheres ibéricas. Revestem tais formas
uma pele branquíssima e um olhar altivo, pretensioso e destemido, incomum nas
mulheres inferiores e, sobretudo, nas subjugadas em invasões militares. Trazida
a minha presença, não se curvou nem desviou o olhar. Ao contrário, olhou-me
firmemente nos olhos, como se contestasse a autoridade militar que a
intervenção divina me concedeu sobre sua vontade. Sua intransigência me fez
ferver febrilmente dentro da minha armadura, ainda fétida e encharcada de
sangue ibérico da batalha campal. Delirei de luxúria e, curiosamente, não de
ira.
Inquiri-a sobre suas origens. Disse-me ser celtíbera, secamente, sem o olhar
complacente e rogativo de clemência com que tantas vezes me deparei nessas
ocasiões. Despiu-se como que protocolarmente, olhando-me nos olhos. “Cumprirei o encargo que Vossa Excelência
determinar se isso redundar na salvaguarda da minha família”, disse,
reverenciando-me, com elegância, na sua túnica branca, levemente enlameada na
altura dos joelhos, pelo que, presumo, tenha sido a prece que antecedeu a
transposição do muro por nossa centúria. Permaneci imóvel no trono que
violentamente e arbitrariamente ocupei, absorvido por seus gestos singelos e delgados
e embebido no perfume que escapava dos seus ondulados cabelos castanhos.
Senti-me arisco e forte e desejei possuí-la vorazmente e, mais que isso,
cavalgá-la maliciosamente conforme manda a lendária tradição equestre de Celta.
Contive-me, no entanto. Ordenei que Maximmus fosse
à aldeia procurar pelo senhor pai da donzela. Ele, aturdido ante a minha ordem
e demonstrando espanto, pediu-me que repetisse o comando, para sua melhor
compreensão. “Ordeno-lhe que procure o
pai da donzela e traga-o à minha presença, imediatamente”, disse-lhe, em
tom imperativo, ao que ele se retirou rapidamente, deixando a sala de
comando. À donzela, que, nesse momento, estava igualmente confusa e cobria seu
busto com os braços entrecruzados formando um anguloso “x”, ordenei que se
dignasse a cobrir suas vergonhas e mandei que aguardasse pela chegada do seu pai.
Momentos depois, mostraram-se à minha presença Maximmus e o velho celtíbero pai
da moça. Antes que pudesse me reverenciar, levantei-me do trono e dirigi-me
rapidamente a eles, ocasião em que, unindo as mãos de pai e filha, devolvi-lhe,
intocado, seu precioso tesouro, dizendo-lhe: “Pela glória de Roma e harmonia das populações ibéricas, devolvo-lhe,
senhor, sua amada filha”. Disso seguiram-se o choro e a gratidão de ambos,
que se puseram aos meus pés, agradecendo o gesto piedoso.
Tal gratidão aproveitou aos cofres da nossa
empreitada, já que se tratava de rico proprietário de terras, que, em sinal de
respeito e consideração, somou vultosas quantias que servirão para engrossar as
fileiras do esforço militar romano e depositou trigo para alimentar nossos
destemidos guerreiros. Chegou-me ao conhecimento, ainda, que a donzela estava
prometida a um jovem comandante de nome Alúcio, que havia sido aprisionado
durante a nossa conquista. Imediatamente determinei sua libertação e
entreguei-o solenemente à sua agora esposa em ato público que celebrou
simbolicamente a união das populações ibéricas e reforçou a legitimidade da
nossa presença na região, facilitando a adesão dos nativos aos nossos
propósitos. Fui reverenciado por sinos durante três dias seguidos.
Os anos da minha curta existência estão passando e
vejo que mais importante que força física e coragem são o comportamento
temperante e a compreensão sobre os homens. Eles, e mais precisamente, seus corações,
devem ser os destinatários da nossa atenção e objeto das nossas conquistas. A
espada com que lhes sangro o peito deve servir, também, para condecorá-los
quando se dignem a unir-se a nós. Devemos-lhes respeito por sua coragem na
batalha e por assentirem com nossa presença nas suas casas. Sem eles, sem esses
homens a quem hoje subjugamos, seremos sempre ovelhas cercadas por um matilha
de lobos. Seremos um castelo de cartas frágil, a ser destruído por qualquer
ventania. Com a adesão e respeito dos povos conquistados somaremos as forças
que, sob minha liderança, destruirão Aníbal e incendiarão Cártago. Escreverei
meu nome na história e, no longínquo século XXI, em terras que hoje
desconhecemos, serei lembrado e reverenciado como artífice de uma civilização
que ditará por milênios as bases da convivência entre os homens.
A imagem acima, reproduzida sem fins lucrativos e assegurando os direitos reservados, é uma reprodução da obra "Clemência de
Cipião", de Giovanni Bellini, que está depositada na Galeria Nacional
de Arte, em Washington D.C.