Na minha primeira aula no curso de Direito, o professor escreveu no quadro a
frase que dá o título a este texto. Após alguns segundos de suspense, começou a
questionar qual a impressão de cada aluno sobre a referida sentença. Muitos
tentaram responder; segundo lembro, acho que também tentei. Olhando para trás,
todavia, e recordando do que foi dito, vejo que o professor, infelizmente, não
conseguiu extrair de nós boas respostas. Na verdade, a ideia por trás da frase,
em geral, não foi muito bem apreendida pelos alunos.
Tal insucesso pode ser atribuído à nossa inocência à época ou, o
mais provável, ao fato de que é mesmo difícil para as pessoas, ainda depois de
adultas, enxergarem como e em que proporção os juízos que fazemos sobre as
coisas é influenciado pelo feixe de valores e ideias que acumulamos durante a
vida e que a estranheza com a qual encaramos concepções divergentes da nossa
deriva, não necessariamente, do completo absurdo de tais ideias mas do fato de
terem sido gestadas por mentes fincadas num conjunto de valores muito distinto
do nosso.
De fato, nossas predisposições e inclinações particulares,
derivadas da nossa personalidade, da nossa formação cultural, do papel que
desempenhamos na sociedade e de outras idiossincrasias turvam nossa
objetividade analítica e dificultam que façamos uma avaliação mais científica
das situações que nos são apresentadas e até que possamos apreender o processo
de construção de ideias de pessoas com um mindset diverso.
Considerando isso, para evitar o risco da má-avaliação, qualquer
reflexão séria deve partir, sem dúvidas, do conhecimento próprio, ou seja, de
entender como essas circunstâncias especiais interferem no nosso processo de
julgamento das teses que nos são submetidas.
Conhecendo esses aspectos, podemos sopesar (ou mesmo refrear)
essas inclinações individuais para que nossas opiniões sobre assuntos em geral
não sejam somente uma emanação da nossa forma de ver o mundo ou um pitaco da
nossa personalidade e para que tenhamos um senso mais apurado (e linear) de
correção moral e justiça, o que só podemos obter quando observamos o mundo por
diversas outras cores, diferentes das nossas.
Alguns até traduzem essa ideia como uma espécie de exercício da
empatia, ou seja, aquela ideia de se colocar no lugar do próximo para avaliar a
situação. Isso não é, todavia, o que advogo nesse texto. Não se trata,
propriamente, de se colocar no lugar do próximo, pois esse modo de avaliação
está eivado do mesmo vício a ser combatido, que é o de analisar as questões
partindo de um ponto de vista individual, peculiar e próprio.
Dou um exemplo de como é inadequado pensar dessa forma. Imaginem
um juiz que adotasse essa forma de empatia e visse o processo judicial penal
somente pelos olhos do réu. Não é difícil imaginar que, ainda que cercado das
mais concretas e robustas evidências da prática criminosa, teria enormes
dificuldades em condenar. Isso porque até os mais impiedosos assassinos tendem
a imaginar-se de forma benevolente, até mesmo como vítimas, de modo que,
analisando a situação sob esse viés, o magistrado se veria inclinado a aliviar
a responsabilidade do réu pelo ato praticado.
A ideia que quero transmitir é a de não ver a situação sob um dos
enfoques. É a de não ver a situação “pelo lado do mais fraco” ou “pelo lado do
mais forte”, mas sim por múltiplos pontos de vista, sopesando e analisando a
situação por diversas óticas complementares.
Antes de avançar nessa ideia, todavia, é necessário certo aporte
teórico.
Hoje compreendemos, sem tergiversação científica, que os seres
humanos tendem, ainda que inconscientemente, a fazer escolhas ou avaliar
situações segundo o benefício direto ou indireto que lhes pode advir, ainda que
esse bônus afete de maneira bastante remota a sua vida ou dos seus entes
próximos.
Sendo assim, esse mindset de que falei, ou seja, esse feixe de
ideias e valores que determina nossas escolhas está intimamente relacionado com
o que consideramos interessante para o nosso proveito.
O filósofo americano John Rawls, visando contornar esse problema,
qual seja, da dificuldade que nós, seres humanos, temos de avaliar situações
objetivamente, desconsiderando nosso proveito próprio, propôs um artifício
teórico conhecido como o véu da ignorância.
Disse ele que as escolhas dentro de uma sociedade só seriam
adequadamente justas se todos responsáveis por essas decisões estivessem
cobertos por um véu que lhes tirasse a ciência de quem, de fato, são na
sociedade, ou de que papel desempenham no corpo social. Segundo ele, somente
assim, poder-se-ia identificar que determinada decisão não derivou da busca,
ainda que indireta, por algum proveito, ainda que remoto, mas sim de uma razão
de ordem objetiva.
Tal solução tem cunho eminentemente teórico e serve de argumento
para a construção filosófica desenvolvida pelo autor em sua obra. Não é (nem
tem a função), contudo, de ser passível de aplicação na realidade, como método
de julgamento, porquanto é impossível ao ser humano deixar, episodicamente, de
ser quem é (com todas as implicações de sua personalidade, ideologia e visão de
mundo) para tomar determinada decisão e retornar a ser o que sempre foi,
reocupando seu lugar na sociedade.
Sendo assim, diante dessa inviabilidade (de vestir esse véu) e da
limitada compreensão a que nós, seres humanos, estamos submetidos, resta a nós,
se quisermos ter uma visão de moral e concepção de justiça mais aprofundadas,
adotarmos a postura de estarmos sempre avaliando os motivos pelos quais temos
inclinação por determinadas soluções, para que, sopesando o impacto da nossa
individualidade sobre o que julgamos ou escolhemos, possamos chegar a soluções
que envolvam uma noção do justo mais balanceada pelas diversas matizes que
compõem a sociedade ou mais próxima de uma ideia conceitual de justiça absoluta
(inatingível?) e, portanto, distante de soluções casuísticas e do relativismo
determinado pela adoção de um ponto de vista singular.
Somado a esse freio das nossas paixões e afinidades, é relevante
submeter as nossas preconcepções sobre o tema a diversos pontos de vista, como
se submetêssemos essas questões a uma multiplicidade de cidadãos dotados de
apurado senso e integrantes das mais diversas categorias de pessoas existentes
na sociedade.
Esse exercício pode ser imaginário, ou seja, refletirmos como
várias pessoas, isoladamente, observariam aquela situação, ou decorrer do necessário
e saudável contato com os diversos elementos que compõem a coletividade, afinal
de contas, difícil acreditar numa razoável concepção do justo ou moral obtida
apenas pela reflexão individual e solitária (ainda que seja essa fundamental).
Esse processo, que envolve profundo autoconhecimento, nos dá
ferramentas para que possamos chegar a soluções mais justas de um ponto de
vista mais coletivo e menos individual, afinal a correção ou incorreção de uma
tese ou mesmo a justiça ou injustiça de uma situação nunca pode ser avaliada
por um espectro de individualidade, segundo a ótica de uma determinada mente,
sob pena de termos concepções frágeis e unilaterais do que é correto, justo ou
moral. Vale recordar que a caça pode soar absolutamente injusta para o cervo,
mas nunca terá essa conotação para o leão.
Em termos práticos, identificadas nossas predisposições, é
relevante que tentemos abordar as questões que nos são submetidas pelos
múltiplos vieses que se desvelam, o que envolve, inclusive, questionarmos a nós
mesmos, ou advogarmos teses contrárias às nossas, para alcançarmos uma solução
justa ou moral, não mais de um ponto de vista exclusivamente individual, não
apenas por um filtro, mas de um ponto de vista conglobante.
Cuida-se de tarefa não muito simples mas que pode ser sintetizada
pela ideia de não enxergar as situações somente pelos nossos olhos, mas pelos
diferentes olhares existentes no seio da sociedade. Vendo a vida nesses termos,
veremos que a opinião contrária, geralmente, não é absurda; ela só deriva de
outra forma de conceber o mundo.