quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

2027

O ano é 2027. A nação está em profunda crise política e econômica há dez anos. Partidos políticos de todas as matizes ideológicas chegaram ao poder e o deixaram, abruptamente, em decorrência de escândalos noticiados pela imprensa. Na última década, nenhum Chefe de Governo conseguiu completar um ano de governo, tendo sido substituído por interventores e, em seguida, por políticos de ideologia diametralmente oposta.

No Parlamento, subsistem velhos e novos congressistas, poucos dos quais conseguem a reeleição. Os eleitores, frequentemente, se frustram por não terem suas pretensões atendidas e decidem redirecionar seu voto para outro político que prometa atender-lhes de algum modo. Os representantes mais votados são os ex-participantes de programas de canais da Internet e os que decidiram delegar, por completo, sua intenção de voto aos seus eleitores, que manifestam sua opinião por meio de plataformas virtuais.

Os partidos políticos passaram por intensa modificação. Após o desgaste e cansaço da população quanto ao debate ideológico entre esquerda e direita, eles deixaram de representar e defender ideais políticos e passaram a congregar segmentos de pessoas, agregados por condição econômica, etnia ou outra característica peculiar. Assim, foram criados o PNB (Partido dos Novos Pobres), para representar a classe média relegada à pobreza após a crise econômica, o PME (Partido das Minorias Étnicas) e o PSP (Partido dos Servidores Públicos).

Há cerca de cinco anos a multiplicação de tais partidos resultou na subrepresentação dos cidadãos que não integravam qualquer uma dessas agremiações. Esse contigente populacional passou a ter dificuldades cotidianas, desde para conseguir lugares nas filas para alimentação, até para encontrar vagas disponíveis na rede de saúde pública. As benesses legislativas para grupos específicos esvaziaram as vagas gerais para o grosso da população e, para contornar esse quadro, foi criado o PR (Partido do Resto).

Após uma profunda crise de credibilidade e da descoberta do envolvimento de membros da imprensa com políticos envolvidos em casos de corrupção, os veículos de imprensa tradicionais perderam toda credibilidade e espaço para meios jornalísticos alternativos, em redes sociais e blogs da Internet. Figuras importantes do jornalismo nacional, após perderem o emprego, apresentam jogos interativos por meios de plataformas streaming na Internet e programas de venda online.

As redes sociais e aplicativos de smartphones dominam o debate social e político. Novas formas de democracia direta foram inventadas e o cidadão opina, diariamente, pelo smartphone, com reconhecimento biométrico, sobre quem deve ganhar o programa de culinária de maior audiência e sobre propostas legislativas de grande importância, como a recente proposta de descriminalização do crime de estupro, desde que consentido pelos pais.

Os julgamentos passaram a ser transmitidos pela Internet. É possível acessar cada uma das salas dos Tribunais em tempo real e checar o que se está decidindo, com a possibilidade de opinar a cada um dos Juízes sobre o que deve ser decidido.

A Nova Suprema Corte registrou semestre passado o primeiro caso em que houve direta participação popular, com a possibilidade de consulta da Sociedade por meio de enquete virtual, que passou a ter o valor de voto correspondente a dois dos cinco ministros. O julgamento resultou na absolvição de conhecido jogador de games virtuais pelo assassinato de seus pais. As estatísticas de acesso revelaram ter sido o site acessado por grande quantidade de jovens, fãs do citado réu.

Os julgamentos transmitidos pela Internet, ao contrário do que poderia se presumir na década passada, duram hoje muitas e muitas horas. Isso porque cada um dos Juízes explica, didaticamente, à população em casa os motivos pelos quais decide dessa ou de outra forma. Além disso, tendo sido extinta a vitaliciedade dos magistrados, há a preocupação do Juiz em renovar seu mandato, o que lhe demanda a necessidade de prestar contas à população sobre como decide. O decano da Corte tem fortes ligações com o Partido dos Novos Pobres e detém a maior quantidade de seguidores na rede social que reúne os fãs das transmissões de julgamentos.

Além disso, nas sessões colegiadas, são constantes os episódios de agressões verbais entre os Juízes. A assessoria de imprensa dos magistrados monitora a percepção do público e tais informações subsidiam a postura a ser adotada por cada um, em busca de melhor aceitação junto à opinião pública e, por consequência, reeleição para o cargo.

Os agentes públicos buscam, incessantemente, promoção pessoal e se associam a membros da imprensa e a detetives virtuais particulares para formar dossiês contra adversários políticos.

A sociedade não deposita confiança em qualquer das instituições, tampouco as pessoas depositam confiança em qualquer outra pessoa. Tornaram-se populares os encontros nas piscinas de hotéis, como forma de evitar a gravação de conversas entre os interlocutores. As pessoas evitam fotos com grupos de pessoas, temendo constituir material que possa ser usado no futuro em seu desfavor, nos tais dossiês difamadores.

O fenômeno não ocorre somente em Babel. Outras nações convivem com problemas semelhantes e ainda piores: pobreza generalizada, surtos coletivos de histeria, suicídios e quadros depressivos são registrados por órgãos de saúde em patamares nunca vistos. Outras nações, em crise há mais tempo, já adotam formas de governo já esquecidas, geralmente com poder concentrado em uma ou algumas pessoas, ou sucumbiram ao radicalismo religioso, sepultando a distinção entre Estado e Religião.

Em 2027 nos encontramos no limiar de um rompante social. A população protesta agressivamente nas ruas, incendiando órgãos públicos e propriedade privada, sem qualquer mecanismo de controle. As Forças Armadas e o aparato policial foram dissolvidos em decorrência de consulta popular, que consideravam tais corporações violentas e desnecessárias, tendo sido os recursos redirecionados para shows artísticos e o entretenimento público. Há apenas os Conselhos Comunitários de Aconselhamento e Prevenção de Infortúnios, para controle social, embora ostente funções meramente pedagógicas. Não há ordem, somente o caos.

Distopia ou realidade?

Saberemos.