domingo, 24 de setembro de 2023

Das Promessas não Cumpridas










Domingo.

A luz atravessa as frestas das cortinas e toca minha face.

Sinto o calor de cada feixe, um por um. A elevação do calor me incomoda. Aturdido e confuso, abro, timidamente, os olhos para compreender o que se passa.

Os fótons, imediatamente, invadem minha retina e me despertam. 


Ainda assimilando a realidade, percebo, ao lado da cama, um copo com água pela metade e resíduos de antiácido em suas paredes internas. Uma embalagem de Engov repousa semi-lacerada na cabeceira.

O conjunto dessas informações, rapidamente processadas pelo meu cérebro, levam a uma única conclusão: inequivocamente, estou de ressaca.


Retomando as forças, tento levantar e, na primeira tentativa, não consigo. Vencido pela inércia, volto a sentar na cama, enquanto sinto o estômago embrulhar e a cabeça doer. 


Olhando ao redor, vejo que a entropia tomou conta do lugar. A desorganização de meus pensamentos reflete a falta de ordem do cômodo no qual me encontro. Roupas pelo chão indicam um processo atabalhoado em direção ao leito. A costumeira e sagrada rotina que costuma anteceder o sono foi, certamente, desprezada na noite anterior.


Ao olhar no espelho enxergo apenas fragmentos de um ser humano. Olhos profundos, cabelo assanhado, visivelmente mais idoso, em um estado de abatimento e prostração que me assemelham a um moribundo dando seus últimos suspiros no mais decadente nosocômio. Desidratado como um punhado de areia, sinto fragrâncias semelhantes às existentes dentro de um consultório odontológico. Na boca, apenas gosto de… ferrugem.


Internamente, o cenário é ainda mais obscuro. A alegria que enchia meu peito na véspera agora dava lugar ao mais profundo vazio.  Não há, aqui, propriamente, uma tristeza, mas algo mais parecido com uma completa “desalegria”. Absolutamente não contente e impassível, sobram-me apenas pensamentos melancólicos e recortes distorcidos dos acontecimentos do dia anterior.


E, assim, atravesso o dia, entre tormentos, lamentos e descontentamentos. Coloco uma comédia na TV para melhorar um pouco de humor, afinal elas sempre ajudam nos momentos mais difíceis. Mas, na matriz de emoções por que passo, estou, certamente, bem mais próximo ao choro do que ao riso. Entre a comilança desenfreada e a absoluta imobilidade, atravesso todo o dia convalescendo, ainda recluso, no meu caixão de alvenaria.


Faço aquela promessa feita por todos, mas já moderada por experiências anteriores frustradas. Em vez da radical “nunca mais beberei” contento-me com a modesta “vou passar um bom tempo sem beber”. É uma promessa que parece razoável e muitíssimo sincera, já que saiu do fundo do meu coração, naquele momento.

Passam alguns dias, às vezes semanas, e a lembrança desse dia terrível fica cada vez mais distante…

Não sei bem ao certo. Talvez eu tenha exagerado na reação. Overreacted, dizem os americanos. Talvez eu tenha me alimentado mal no dia ou quem sabe não estava 100% de saúde.

19:35 toca o telefone. “Estamos aqui com o pessoal do trabalho. Coisa leve. Não vamos demorar muito, até porque todo mundo tem obrigação amanhã”.


O convite parece razoável. Limitado no tempo, com promessa de moderação. Além disso, todos os amigos iam. Seria até uma falta de consideração não comparecer ao evento. Ainda mais depois de dizerem que a turma de Salvador e João Pessoa havia descido no aeroporto e estava, também, a caminho. Mais um argumento.


Iniciado o processo deliberativo, parto da premissa de que dizer não sempre é bem desagradável. De perfil diplomático, sou, geralmente, péssimo em negativas. Como a maior parte dos brasileiros, prefiro adotar a linha que medeia o acolhimento e o desacolhimento dos pedidos. Um “acho que sim” bem pouco convicto ou um “vou ver e te aviso” resolvem muitas questões de forma mais suave e sem agredir a ninguém. Neste caso fui mais contundente do que o que de costume, talvez pelo fato de a decisão já ter sido tomada, e asseverei: “Vou terminar uns processos aqui e chego jajá”.

Chegando lá, tomo a primeira. Continuo sendo a mesma pessoa que havia feito aquela promessa. Compenetrado e resoluto a cumprir com o objetivo antes traçado.

Na segunda, começo a me transformar em outra pessoa bem menos comprometida.

Na terceira, até reconheço aquele que havia dito que ia passar um tempo sem beber, mas já percebo uma nítida separação entre o eu-lírico e o eu-etílico.

Na quarta… o resto da história nem preciso contar.


É, amigos… Aconteceu de novo. Promessa descumprida com sucesso.