Algumas pessoas não sabem, mas os Fóruns são locais de acesso
público. Todos podem acompanhar os atos processuais. Trata-se de previsão da
Constituição brasileira, segundo a qual todos os julgamentos do Poder
Judiciário serão públicos, ressalvados os casos excepcionais de preservação da
intimidade.
E, pode parecer que não, mas muitas pessoas exercem esse
direito e, mesmo sem qualquer relação com o caso sob julgamento ou mesmo sem nenhuma
formação jurídica, frequentam, habitualmente, os Fóruns somente porque
adoram o dia-a-dia forense.
Curiosos se sentem realizados nos Fóruns. Nos Fóruns, sempre
é possível observar alguma confusão ou acontecimento inusitado. Alguns preferem
as Varas de Família para poderem observar as disputas familiares e fazer
investigações sobre a vida alheia, outros preferem as Varas Criminais, pelo
clima de tensão no transporte dos presos ou para tentar descobrir o crime
cometido por cada réu.
Em Fóruns no interior há os visitantes frequentes. Desejosos
de saber da vida do povo, eles dão uma passada no Fórum da cidade para
acompanhar as últimas novidades.
Falando nisso, recordei de um caso do começo da minha
carreira.
Estava eu com uns 26 anos e acabara de chegar em uma Subseção
do interior do Brasil. Cidade bem pequena.
Antes mesmo de tomar pé sobre as questões da Vara, o Diretor
de Secretaria me avisou que havia pauta de audiências criminais no dia seguinte
e me perguntou se eu iria mantê-las.
Decidi não desmarcar, por conta do imenso prejuízo de
remarcar esses compromissos. Em audiências criminais, geralmente, uma guarnição
policial vai até a penitenciária para buscar o preso e conduzi-lo até o Fórum. Antes
da sua realização, tem que ser realizadas inúmeras intimações nas semanas
antecedentes. Enfim, é algo bastante trabalhoso e o adiamento é sempre muito
prejudicial.
No dia seguinte, na hora marcada, assim que entrei no Fórum, cumprimentei
o segurança e passei pela frente da porta da sala de audiências. Logo na frente
da porta, fica localizado aquele grande banco no qual as partes e advogados
costumam se sentar para aguardar o início da audiência. Estavam nele sentadas
quatro pessoas: dois policiais e, no meio deles, o réu e, no cantinho do banco,
um senhor de idade avançada, com chapéu na cabeça e camisa desabotoada até a
altura dos mamilos.
Cumprimentei a todos, ao que me devolveram um “boa tarde”. O
senhor, que estava no canto do banco, ficou calado, mas levantou um pouco o
chapéu, em tom de cumprimento. Como eu acabara de chegar na cidade e aparentava
ser muito novo na época, creio que os policiais não acharam que eu era o Juiz
da Vara. Geralmente, as pessoas esperam que o Juiz seja um senhor de cabelos
brancos.
Essa dúvida, no entanto, foi, de logo, sanada por Seu
Marcolino, que vim a descobrir, depois, ser esse senhor calado sentado ao
banco.
Entre a sala de audiências e o corredor do Fórum, havia
apenas uma fina parede de compensado (aquelas divisórias de escritório). O
material é tão pouco espesso, que permite que se escute tudo que acontece no
corredor do Fórum, a ponto de ser frequente o Juiz dizer para o Oficial de
Justiça pedir para os transeuntes diminuírem o barulho para não atrapalhar as
audiências.
Pois bem.
Assim que entrei na sala de audiências, a despeito da
divisória, pude escutar, claramente, Seu Marcolino falando do lado de fora, diretamente
para o réu:
“Você sabe quem passou agorinha? Esse rapaz bem novinho... É o Dr. Fernando, juiz que chegou agora aqui na cidade. Tu estás lascado, visse. Esses novinhos são os piores que tem”.
Escutei, em seguida, aquele som de uma mão batendo contra a outra mão (aquele gesto que indica que algo deu errado) e uma risada. Depois, fez-se o silêncio. Imediatamente, ele puxou outro assunto com um dos policiais. Falou sobre
armas de fogo, acho.
De dentro da sala de audiências, eu estava escutando tudo e já que não conhecia o
cidadão, fiquei espantado com o fato de ainda não ter proferido nenhuma decisão
na cidade e ele já estar falando sobre minha atuação jurisdicional. Fiquei
curioso e perguntei, então, ao copeiro: “Quem é esse senhor que tá falando
sobre mim?”
O copeiro, que, geralmente, é o melhor amigo do Juiz em
qualquer Fórum, deu um leve riso e passou logo o relatório completo:
“-Dr., Seu Marcolino vem toda quarta-feira para cá. É que ele
gosta de acompanhar as audiências criminais. Vem sempre aqui no Fórum. Adora
polícia, Justiça, essas coisas. Chega aqui bem cedo e só sai quando acaba a
última audiência do dia. Torce toda vez para os réus se lascarem. Quando o juiz
libera, ele reclama. Quando o juiz prende, ele fica contente, bate palmas e
fala bem do juiz. Se preocupe não, ele é doido, já tem um bocado de atestados médicos.
O povo da cidade já sabe”.
E a apresentação que o copeiro fez se mostrou fidedigna,
conforme pude acompanhar nas semanas seguintes. O humor e a opinião de Seu
Marcolino variavam comigo e sobre mim segundo cada decisão que eu proferia.
Quando acabava a audiência e o réu voltava preso, escoltado pela guarnição,
escutava ele, lá de fora, me elogiando: “eita Juiz bom da gota, porreta demais”.
Quando o caso era de concessão de liberdade, ele me esculhambava: “fraco demais
esse Juiz, pior que passou por aqui”. E eu escutava tudo lá de dentro, já que
ele falava bastante alto. Quando não escutava, o copeiro já vinha trazer o café
rindo e comentava: “Seu Marcolino tá contente demais com o senhor hoje”.
A situação perdurou por vários meses até que pedi remoção
para outra cidade. Ele ficou por lá. Deve ter avaliado a jurisdição de todos os
juízes que me sucederam.
Eram divertidas as histórias que contavam sobre Seu
Marcolino. Ele dizia que havia sido policial, militar do Exército, guarda
municipal, atirador de elite e toda outra carreira do law enforcement que você possa imaginar.
Era uma figura carismática, uma espécie de anfitrião do
Fórum. Alguns Juízes, no passado, haviam se indisposto com ele. Eu avaliei que,
desde que ele não gerasse tumulto, não havia problema em ele frequentar o
Fórum. Afinal de contas, o Fórum, desde a Roma Antiga, sempre foi "a casa do cidadão", local de cerimônias, discursos e julgamentos.
Passei a brincar que Seu Marcolino era meu Corregedor (bem
impiedoso, por sinal). Suponho que tenha feito suas duras avaliações a todos os
Juízes que me sucederam.
O Poder Judiciário é, por vezes, e com certa razão, tachado
de inacessível e fala-se muito em um certo “encastelamento”. Críticas vindas do
cidadão devem ser compreendidas e assimiladas para que o Poder Público possa
se aperfeiçoar. Mas há, também, nos Fóruns e Tribunais do país um lado humano,
às vezes escondido, e que passa despercebido para parte da população. Em alguns locais pelos quais passei posso dizer que fazia
parte de uma grande família, de uma verdadeira comunidade. Tenho certeza de que essa realidade se repete pelos
rincões e limites deste imenso país. São muitas e muitas histórias que contam muito
sobre o que significa ser brasileiro. Uma novela todo dia, a que assistimos com
muita atenção.
O exercício da jurisdição é uma experiência de imersão nas
vidas das pessoas, um aprendizado intenso e perpétuo. Sou muito grato por
aprender, a cada dia, com todos os brasileiros, das diferentes classes sociais
e níveis educacionais sobre as complexidades e vicissitudes da experiência
humana. Os Fóruns de interior são um caso à parte. Sem dúvida, os meus
favoritos.