sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

Despedida




Como sabemos, um fato lamentável ocorreu nesta semana, mais precisamente no dia 29 de novembro de 2016. Refiro-me ao acidente trágico com a aeronave que levava à Colômbia o time de futebol do Chapecoense.

As investigações preliminares apontam para uma suposta pane seca, ou seja, uma banal falta de combustível, fato corriqueiro nos automóveis, que gera, no mais das vezes, apenas aborrecimento, mas traz uma sentença de morte quase irrecorrível quando tratamos de viagens aéreas.

O diálogo do comandante com a torre de controle de tráfego aéreo, divulgado pelo noticiário, nos situa sobre o que se passava na cabine do avião quando adveio a certeza de que o avião não teria combustível suficiente para pousar na pista do aeroporto.

Após pedir instruções para a aproximação final do vôo e ser informado de que ainda faltavam algumas milhas para a pista, o que inviabilizaria o pouso, disse o comandante, apenas: “Jesus...”.

Escutei por duas vezes o áudio, atentamente. Não identifiquei desespero na sua voz. Ele o disse de forma serena, quase que conformado com o destino que esperava a ele e aos demais passageiros. Não que não houvesse medo na forma como o disse, pois certamente havia, mas não havia o pânico, porque não havia esperança de pousar a aeronave regularmente.

O pânico é uma reação natural do nosso organismo quando posto sob risco de perecimento. A injeção de adrenalina que lhe acompanha serve para que possamos processar as informações e agir mais rapidamente para superar a situação de risco. Ocorre que, naquela circunstância, de nada serviria ao seu propósito, pois não havia ação a ser tomada que pudesse, naquele momento, contornar a tragédia. Talvez por isso a conformação na cabine com o fato.

A aeronave apresentou falha elétrica quando suas turbinas deixaram de funcionar por falta de combustível, o que prejudicou a navegação. Subsequentemente, houve a perda de sustentação da aeronave, o que inviabilizou o controle do avião. Nessa hora, o piloto era apenas mais um passageiro e tinha a consciência de que teria que lidar com a iminente queda da aeronave e com o quase certo destino que os esperava. Não havia nada que pudesse fazer ou dizer para mudar o desfecho da situação. A partir de então, todos teríamos que lidar com a tragédia.

Por mais alheio ao futebol e mais acostumado que se possa ser com tragédias humanas, é impossível não se consternar ou não se abalar com tão chocante acontecimento. As imagens das famílias, os vídeos dos jogadores, a felicidade estampada nos rostos antes de embarcarem no vôo: tudo é muito forte, além de triste. É uma pena tudo acabar tão precocemente e é muito difícil de assimilar o fato.

Infelizmente não descobrimos como nos opor ou mesmo impedir o advento desse violento fato natural ao qual todos os seres vivos estão condenados. Por mais que avance a medicina, sempre estaremos sujeitos a esse ingrato destino, que é o de deixar este mundo, eventualmente.

Passado o momento de perplexidade, já no dia seguinte, vimos homenagens e demonstrações de carinho, igualmente, impactantes e comoventes. A união entre a torcida e a solidariedade de todos nos fazem recordar da capacidade que tem o ser humano de, em momentos de sofrimento, coletivamente, superar as mais graves dificuldades.

Por mais difícil que seja assimilar a perda prematura de jovens que viviam a melhor fase de suas vidas, nós, seres humanos, temos a capacidade de atravessar esses momentos e aprender com eles. Ver dois estádios completamente cheios, um em Chapecó e outro em Medellín, cantando, de forma uníssona, e homenageando os que pereceram foi uma demonstração espetacular do material de que somos formados.

Nós, humanos, somos repletos de defeitos, mas temos algo de especial. Algo que nos permitiu chegar, fisicamente, à Lua e, por meio de sondas, vasculhar os mais profundos recantos do nosso Sistema Solar. Algo que nos fez desenvolver a aptidão técnica necessária para nos tirar das cavernas e nos colocar em arranha-céus que desafiam a gravidade. Algo que nos fez desenvolver modelos de sociedade que, ainda que com contrastes e defeitos, nos tiraram da barbárie e da violência de todos contra todos para erguer Roma, Grécia e os modernos Estados democráticos.

Nesses momentos podemos observar o que podemos fazer quando unidos e que somos, sim, capazes de ações altruístas e de exercer a empatia, colocando-se no lugar do próximo. Embora os acontecimentos cotidianos nos façam, às vezes, desacreditar do caráter e da boa intenção de muitos, em eventos trágicos como esses somos relembrados da capacidade latente que tem o ser humano de se reinventar e, bem agindo, superar as mais intensas adversidades.

Assim, ainda que viver essas tragédias seja extremamente doloroso, tais momentos servem, ao menos, para retomarmos a fé no ser humano e no que somos capazes de fazer uns pelos outros.

É uma pena que o aprendizado venha a um custo tão alto (nesse caso, de caráter definitivo e irremediável), mas não há nada que possamos fazer, além de lamentar e confortar aqueles que sofreram mais intensamente com a tragédia.

A bandeira esteve a meio mastro naquele dia, como uma singela homenagem de um pequeno grupo de pessoas no longínquo oeste da Bahia.

Inexorável e intransigente, havia chegado a hora da despedida.

quinta-feira, 3 de novembro de 2016

Dúvida



A dúvida é definida, em termos simples, como a ausência de certeza sobre uma determinada questão. As dúvidas podem derivar desde ponderações simples como “qual sorvete devo escolher” até elucubrações científicas mais profundas como “qual a natureza dos buracos negros”.

Curioso é que as pessoas que reputo dotadas de mais apurado discernimento e lucidez costumam me relatar estar sempre atormentadas por dúvidas ao passo que as tolas costumam ter sempre certeza de tudo o tempo todo.

Isso é interessante porque seria presumível que, dotadas de melhor capacidade de julgamento, e abastecidas de maior quantitativo de informações, pudessem os mais sensatos ter menos dúvidas sobre as questões que lhes são apresentadas (das mais simples às mais complexas) e que fossem mais dispostos a dar respostas conclusivas sobre os pontos inquiridos.

A experiência demonstra, contudo, que os mais frequentes pareceristas sobre assuntos em geral são os menos dotados de possibilidades intelectuais para responder, racionalmente, aos questionamentos e, no geral, dotados de pobre capacidade de aquilatamento e sopesamento de informações.

Tais pessoas opinam sobre os mais variados assuntos como se fossem experts na área e o fazem, em geral, pomposamente, sem dispensar o ar blasé e tom professoral (afinal, de tão sábios acham-se capazes de dar lições sobre qualquer tema).

Suponho que imaginam que a forma como expõem suas afirmações pode alterar, substancialmente, a correção ou veracidade do que dizem ou a própria essência das coisas. São, portanto, sofistas por excelência e acreditam que a verdade é aquilo de que se convence e não aquilo que, de fato, é.

E o curioso é que costumam convencer a maior quantidade de pessoas. Na verdade, dominam as redes sociais e todos os outros ambientes onde predominam os incautos e loucos de todo gênero.

Os comedidos nos seus comentários, ao contrário, são, no geral, menos aplaudidos pelo grande público. Silentes, costumam avaliar o problema abordado por vários ângulos, empregando doses cavalares de reflexão, antes de se pronunciar sobre algum tema. Ainda assim, não se assuste se a resposta, finalmente, não for conclusiva (é que eles não têm certeza).

O prudente sabe, na verdade, que não pode controlar ou mesmo conhecer todos os aspectos que influem no acerto ou desacerto de sua tese e tem ciência de que há circunstâncias outras que podem obnubilar o juízo que realizou ou, até mesmo, que ele pode incorrer em um erro de má-avaliação dos dados que lhe foram apresentados.

Ocorre que, para a generalidade das pessoas, a hesitação na resposta é indicativo de fragilidade intelectual e de provável desacerto na conclusão. Respondem, na verdade, a uma reminiscência biológica de um instinto que afligia as populações de hominídeos que habitavam o planeta antes do nosso processo de florescimento cultural e científico, que é o de concordar com quem demonstra mais convicção nas suas exposições ou com quem aparenta ostentar maior liderança na horda. Em outras palavras, costumam concordar com quem grita mais alto ou são convencidos por argumentos de autoridade (fulaninho falou isso, portanto é verdade).

A experiência demonstra, contudo, que os tudólogos de afirmações peremptórias, geralmente, estão muito equivocados sobre quase tudo o tempo todo. Além da conhecida dificuldade científica de obtenção de um conhecimento certo, definido e que se demonstre conceitualmente correto por um largo espaço de tempo, o que já lhes prejudica em grande parte os acertos nas suas empreitadas expositivas, é fato que a ausência de autocrítica lhes impede de enxergar suas próprias limitações e o elevado juízo que fazem de si mesmos lhes esconde sua própria fragilidade intelectual. Disso resulta sua inesgotável capacidade de constrangerem a si próprios ao afirmarem as maiores asneiras com absoluto grau de convicção.

O percuciente, a seu turno, ciente das limitações que a própria condição de ser humano lhe impõe, tende a ser mais cauteloso em suas opiniões, justamente para não cometer o mesmo equívoco de conduta que costuma assistir, frequentemente, nos tolos, que é o de afirmar, de forma convicta, algo, absolutamente, equivocado.

No final das contas, dividem-se os “formadores de opinião” em dois grupos. O imenso grupo dos tolos, que convence ao gigantesco grupo de outros tolos e o pequeníssimo grupo dos sensatos, que influencia o pequeno grupo de outros sensatos. Cada um no seu quadrado.

Ensaio Empírico sobre a Mentira (uma ferramenta a ser usada com parcimônia)



Ninguém esconde que a mentira faz parte da existência animal neste planeta. Os animais o fazem para sobreviver, quando, por exemplo, se camuflam ou se fingem de mortos para não serem comidos por um predador. De sua parte, os seres humanos o fazem com ainda mais frequência, sendo pródigos na arte, visando a propósitos que variam desde a autoproteção, compaixão com o próximo ou, até mesmo, para causar dano a alguém.

Mente-se em gestos, ações e palavras. Até mesmo uma expressão facial pode consistir numa inverdade ou induzir alguém a ter uma visão equivocada sobre determinado fato. Em geral, as mentiras causam pouco dano ou servem à manutenção de harmonia nas relações humanas. Não me consta, por exemplo, que qualquer marido dotado de bom senso responderia afirmativamente à pergunta: “amor, você acha que estou gorda?”.

Fato é que há os mentirosos compulsivos e as pessoas que mentem, reiteradamente, com propósitos menos nobres. Dessas temos que nos proteger.

Identifico, cotidianamente, duas grandes espécies de mentirosos: os contadores de histórias (story tellers) e os lacônicos.

A primeira categoria, a do contador de histórias, tem, em geral, uma visão agigantada de si mesmo. Acreditam, piamente, na sua capacidade de convencimento. Acham-se inteligentes a ponto de inventar uma história diversa da verdadeira e fazê-la crível a ponto de enganar mentes experientes. Em geral, tais pessoas têm leves desvios de personalidade relacionados à forma como se enxergam, além de traços de psicopatia, e costumam enganar, com facilidade, pessoas menos atentas.

Seu modus operandi é desenhar, mentalmente, uma nova estória e preenchê-la com detalhes. Na verdade, sendo ele, o contador de histórias, experiente no ramo da inverdade, sabe que os detalhes conferem maior credibilidade a qualquer narrativa, por isso prezam por contar uma estória repleta de informações acessórias, como uma cereja para enfeitar o bolo.

Tais pessoas conseguem convencer, com êxito, os mais incautos e aqueles que não têm qualquer conhecimento neurolinguístico, mas são os mais fáceis de identificar para quem, de fato, trabalha e tem experiência com o descobrimento da verdade.

Na prática, a melhor estratégia é deixar que eles falem à vontade e que dêem a maior quantidade de detalhes possível sobre a estória que contam. O ideal é que sejam até mesmo estimulados, por meio de gestos e sinais visuais, a que falem sobre os detalhes da narrativa.

Nesse ponto, é fundamental que o inquiridor tome nota ou recorde de aspectos periféricos da estória. Como diz o ditado, “o diabo mora nos detalhes”. Sendo a estória inverídica, certamente, haverá falhas no desenvolvimento da narrativa e, o principal, inconsistências entre as informações dadas.

É improvável que os elementos centrais da narrativa não se encaixem porque o discurso foi ensaiado e, certamente, o mentiroso se preocupou em conferir harmonia entre os principais aspectos da estória. Isso não ocorre, contudo, com os elementos periféricos, pois esses são, em tese, desimportantes e, na visão do mentiroso, apenas um adorno para conferir maior credibilidade à estória.

Após toda a exposição do fato pelo mentiroso, é essencial confrontá-lo com as informações periféricas (e não as principais) que ele deu. Nesse ponto, o castelo de cartas começa a desmoronar. Primeiramente, porque o mentiroso havia se preocupado em preparar mentalmente respostas para os pontos principais da estória inventada e é pego de surpresa ao ser inquirido sobre dados, em tese, de pouco relevo. Essa linha de abordagem confere um elemento de stress que tem o condão de desestabilizar aquele que mente. Em segundo lugar, nesse ponto o mentiroso começa a ter a noção de que sua missão de enganar não será tão fácil como geralmente costuma ser, sendo-lhe apresentada uma situação mais desafiadora do que a que é acostumado a enfrentar nos seus desvios do dia a dia.

Na prática, ele, em geral, começa a demonstrar fisicamente o desconforto, escondendo as mãos debaixo da mesa, limpando o suor da testa com a manga da camisa ou até enxugando o suor das mãos na calça, além de inúmeros outros sinais do conflito entre seu subconsciente, que sabe da falsidade dos dados, e seu consciente, que racionalmente desenhou a falsa narrativa. No fim das contas, o desconforto é ainda avolumado pela ciência de que será, eventualmente, descoberto na mentira.

Não é raro que, em determinado ponto, comecem a assumir parcela da verdade ou que, cientes da sagacidade de quem os questiona e de que não vão conseguir convencer, partam para uma versão ainda não completamente verdadeira, mas mais próxima do que, de fato, ocorreu. Na verdade, eles costumam ter sucesso nas suas incursões mentirosas nas suas vidas privadas e é a surpresa de não estarem tendo êxito na empreitada que lhes leva à ruína.

A outra modalidade de mentirosos é a mais difícil de identificar para os profissionais, enquanto o leigo costuma ter a certeza de que os identificou, embora isso nem sempre seja a verdade. É que uma considerável quantidade de pessoas responde com timidez e discurso lacônico ao serem colocadas na situação de questionamento, pelo só fato de estarem nessa situação de stress psicológico.

A leitura que o leigo faz daquele que responde de forma lacônica ao ser questionado, em geral, é a de que o interrogando está faltando com a verdade. Não que isso não seja verdade na maioria das situações, mas é preciso divisar e identificar aquelas pessoas que emudecem diante do stress ou que não conseguem se expressar com qualidade em situações em que são postas diante de intenso questionamento.

Nesse caso, aquele que pergunta consegue observar, nas reações do sujeito, os sinais neurolinguísticos de stress e ansiedade (que geralmente denunciam o discurso mentiroso), mas fica difícil discernir se aqueles sinais são oriundos da tensão derivada da própria situação de inquirição ou se decorrem do conflito interno entre o subconsciente, que sabe que o discurso é falso, e o consciente, que inventou a estória.

No geral, o fato de a pessoa questionada não dar maiores detalhes ou não conseguir responder é, como o leigo costuma presumir, indicativo de que, efetivamente, não está dizendo a verdade. Quem conta mentira (e não tem o perfil do story teller), geralmente, o faz usando um discurso genérico e evita entrar em detalhes, pois teme não ter habilidade mental suficiente para manter a coerência na construção da sua narrativa.

Um exemplo de uma história verdadeira é a minha neste momento. Estou escrevendo este texto de um ônibus branco e azul da empresa Progresso em direção à cidade do Recife. O motorista, curiosamente, perguntou se havia passageiros que desceriam na parada da Macaxeira e em Abreu e Lima. Digo curiosamente porque, em geral, eles param automaticamente em tais lugares, questionando aos passageiros se vão descer somente no momento da parada.

Essa narrativa tem prováveis indícios de verossimilhança. Isso porque nela foram exprimidos, com naturalidade, dados que somente quem, de fato, vivenciou a experiência poderia atestar e é possível notar uma relação de pertinência do sujeito com a situação vivida, inclusive com o sentimento de curiosidade do narrador.

Um mentiroso lacônico (e não story teller) contaria essa mesma estória da seguinte forma: “um dia desses fui para Recife de ônibus”. Não diria o dia e nem detalhes, com o objetivo de não deixar nenhuma ponta fora do lugar. Diante da pouca quantidade de informações, o questionador, certamente, perguntaria por mais detalhes, como, por exemplo, se o ônibus estava lotado. Nesse ponto o mentiroso diria: “mais ou menos”.

Na verdade, o mentiroso não dá os detalhes porque tais detalhes nunca existiram, assim como não existiu a própria estória. O mentiroso lacônico também costuma não inventar tais detalhes porque não confia na sua capacidade mental de manter coerência na narrativa construída e prefere minorar os riscos de entrar em contradição.

A dificuldade, em geral, ocorre quando a pessoa inquirida não ostenta muito autocontrole emocional, porque, como dito, os sinais visíveis de stress que exterioriza podem não decorrer da aflição psicológica que acomete aquele que mente, mas sim somente da própria situação de questionamento.

Para contornar essa dificuldade é importante variar as perguntas feitas ao questionado entre temas em que não haveria o presumível interesse de mentir e temas em que haveria esse interesse. Geralmente esse processo é mais demorado até mesmo para que a pessoa questionada consiga reduzir o nível de ansiedade que atinge o pico nos momentos iniciais de inquirição. Após algumas perguntas leves e desinteressadas sobre temas como quantidade de filhos, cor da casa etc., é natural que a pessoa questionada fique um pouco mais relaxada. (É importante lembrar que tais dados podem ser ainda usados para eventual confrontação futura com outros pontos da narrativa).

Sentindo um maior conforto da pessoa inquirida pode o interrogador adentrar em temas mais centrais para o deslinde do caso, pontos em que haveria presumível interesse em mentir. Se a pessoa interrogada voltar a demonstrar sinais intensos de stress psicológico nesse momento é uma indicação de que aquele desconforto decorre do próprio fato de mentir, ou seja, do citado conflito entre o subconsciente e o consciente e não da situação de questionamento em si.

Ainda assim, é necessário bem valorar e sopesar as informações prestadas em conjunto, procurando por inconsistências e, ainda, desprezar algumas informações falsas que a pessoa questionada, eventualmente, dá, mas que não interessam para descobrir a verdade sobre o fato central perquirido. Um exemplo disso é o da companheira que diz ser casada na igreja para não sofrer qualquer tipo de julgamento moral, quando, na verdade, apenas convive com o companheiro. Tal alegação mentirosa sobre seu estado civil, fundada em um preceito de ordem moral, não significa que ela também mentiria, por exemplo, sobre a quantidade de filhos em comum com o companheiro (se esse for o fato principal a ser apurado).

No final das contas, há, ainda, uma série de outras percepções que são difíceis de ser vertidas em palavras para os propósitos deste texto, mas que são trazidas pela experiência do dia a dia, após desenvolver essa tarefa de avaliação da verdade, repetidamente, por milhares de vezes. Há, por exemplo, gestos, palavras e olhares universais que costumam ser empregados pelas pessoas em discursos mentirosos e que são reveladores da inconsistência do conteúdo narrado. É importante que aquele que avalia consiga identificar, também, em quais pontos do discurso haveria presumível interesse em mentir para monitorar as variações de níveis de ansiedade nesses pontos da narrativa. Além disso, a tarefa fica facilitada quando já se tem um conhecimento prévio de como aquela pessoa costuma lidar em situações de stress e comparar essa lembrança de comportamento com o demonstrado quando da inquirição.

Esclareço que tais conhecimentos não garantem 100% de eficácia no descobrimento da verdade, porque nós, seres humanos, somos muito complexos e reagimos de forma diferente aos inúmeros estímulos que nos são dados. Até mesmo o polígrafo é passível de ser enganado e há treinamentos desenvolvidos por agências de inteligência com esse específico propósito. Não obstante, esses conhecimentos ajudam a identificar fragilidades no discurso e, certamente, dificultam a tarefa daquele que mente.

Por fim, desaconselho empregar as ideias aqui descritas em suas relações privadas sob pena de comprometimento do seu bem estar. Na verdade, pequenas mentiras tornam a vida menos dura e estar sempre identificando e avaliando quando alguém está mentindo, além de ser um comportamento bizarro, tira um pouco da graça da vida. Mantenha tais conhecimentos na seara profissional ou para situações extremas e viva a vida, como propõe o blog, de maneira leve.

quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Devaneios Profissionais


Para quem não sabe, a carreira burocrática nem sempre foi minha primeira opção. Já tive devaneios profissionais esportivos, científicos e artísticos.

Comecei muito cedo no esporte amador estudantil. Primeiro no futebol da escola. Na verdade, nunca fui um centro-avante talentoso. Acredito que sempre era escalado pelo “professor” porque sempre fui um jogador raçudo, embora não tivesse, propriamente, habilidade no trato com a bola. Era e sou um jogador de futebol limitado, mas com um jogo bastante pragmático, sem muitas firulas. Considero-me cônscio das minhas limitações, talvez por isso nunca costumava inventar muita coisa. Jogava o feijão com arroz e, geralmente, dava certo.

Aos 10-11 anos tive uma experiência de quase ascensão profissional abruptamente interrompida pela dificuldade de comunicação da época. O time infantil do clube francês Lyon havia chegado na cidade para jogar contra meu time do colégio, para uma possível prospecção de novos atletas. Ocorre que era período de férias e estava numa pescaria com um dos meus tios e primos. Não havendo, ainda, celulares, acabei não recebendo, por ausência de meios tecnológicos, a mensagem do mestre Jaílson com o local e horário da partida.

Embora tenha sido, no momento, uma experiência frustrante, depois de alguns dias concluí, na minha praticidade infantil, que, definitivamente, não seria importado pelo futebol francês. Acabou não fazendo diferença.

Após uma temporada no banco de reservas que começou a se eternizar, acabei migrando para o judô. Nesse esporte me considerava melhor. Aprendi muito rápido os golpes e cheguei a obter razoáveis colocações nos campeonatos locais. Provavelmente deve haver medalhas em alguma gaveta na casa da minha mãe.

O futuro na carreira do judô, todavia, era incerto. Embora já tivéssemos o ouro olímpico de Aurélio Miguel, não parecia, aos olhos de uma criança geralmente prudente, uma escolha que levaria a uma trajetória de sucesso. Logo desencanei, portanto, dessa ideia.

Nesse meio tempo, assisti a uns clássicos de ficção científica, como “2001: Uma Odisséia no Espaço” e “Apollo 13” e flertei, puerilmente, com a possibilidade de participar, profissionalmente, de uma viagem interestelar. Essa meta, contudo, foi frustrada por limitações científicas (como a impossibilidade de a matéria, em geral, viajar na velocidade da luz) e pela precária condição do programa espacial brasileiro dos anos 1990. Tive que me adaptar à realidade.

Dos dois primeiros devaneios profissionais (repetindo, esportivo e científico), somente restou, agora, o interesse por esportes de menor intensidade física, como o tênis, e a curiosidade por assuntos científicos e filmes relacionados ao tema.   

O último devaneio, o artístico, contudo, é mais severo. Tenho um grande gosto por música e instrumentos musicais, o que me rende piadas infames dos familiares e amigos mais próximos. Dizem não saber qual instrumento, de fato, eu toco. Tenho ou já tive os seguintes instrumentos musicais: violão, guitarra, triângulo, repinique, gaita, bateria, cavaquinho, piano, sanfona e, por último, ukulele. Não que eu saiba tocar todos bem, longe disso. Tenho maior conhecimento no violão, bateria e piano, mesmo assim, não creio ter talento musical que pudesse me garantir o sustento (se bem que hoje em dia não é bem um requisito).

Já integrei uma banda de forró pé-de-serra com primos e uma banda de rock com colegas de trabalho. Adianto que nenhuma delas teve qualquer disco lançado ou se apresentou para um público superior a 200 pessoas. Ganhamos, com a primeira, no entanto, um mini festival na faculdade, o que nos envaidece até hoje. Na verdade, acho que ganhamos mais pelo carisma e animação do que, propriamente, pela técnica. Azar deles.

O fato é que ingressei nas atividades artísticas já mais tarde e mais velho e, portanto, menos suscetível a devaneios. Avalio, ainda, agora, que, se tivesse optado por essa via mais cedo, provavelmente não encontraria suporte em casa. Minha mãe, na sua objetividade, certamente diria: “Meu filho, não acho que você tenha talento suficiente”. Risos. Também não consigo me vislumbrar como uma daquelas crianças sem talento que vão a programas de auditório levadas pelos pais para constituírem elementos de prova que deponham contra sua reputação futura.

Pelo bem ou pelo mal, ao tempo do devaneio, meu espírito auto crítico já havia aflorado ostensivamente e não me permitiu sucumbir a esse desejo renitente.

Hoje avalio como acertada a escolha, o que não me impede de achá-la equivocada de vez em quando, somente para, no dia seguinte, mudar de ideia de novo.

Filme Menino de Engenho



Desfrutando das minhas férias, ontem assisti ao filme “Menino de Engenho”, dirigido por Walter Lima Jr. e lançado em 1966, que se baseou no conhecido livro de mesmo nome escrito pelo paraibano José Lins do Rego. O filme, assim como o livro, conta a história do menino Carlinhos, que, após o assassinato de sua mãe pelo seu pai, é levado para morar no engenho de seu avô materno, chamado de Santa Rosa, onde começa a ser criado pelo avô e tios.

O pano de fundo do filme é a Paraíba rural dos anos 1920, ilustrada no cotidiano de um engenho de açúcar, com mostras das profundas mudanças por que passou a cultura canavieira da região no período. A obra retrata um modelo de produção análogo ao feudal, onde os ex-escravos e demais trabalhadores prestavam serviços a um “coronel” numa relação de aparente harmonia e narra o conjunto das intrincadas relações humanas entabuladas nesse quase Estado dentro de um engenho.

A qualidade das imagens não é das melhores em função do tempo decorrido desde sua produção, o que não prejudica a imersão naquele cenário tão paraibano e, simultaneamente, tão acolhedor. O filme propõe um reencontro com nossas origens e um convite a revisitar (ou conhecer) um passado não tão distante da cultura canavieira nordestina. Recomendo.

Nota 8,0.





quinta-feira, 20 de outubro de 2016

Modernidades Interioranas




A globalização chegou, definitivamente, ao interior do Nordeste. E é com grande pesar que venho notando o desaparecimento de importantes símbolos nordestinos, como a indumentária do vaqueiro, os artigos em couro e o popular jegue como meio de transporte. (Recentemente, até a vaquejada está sob o risco de acabar).

Na verdade, o fenômeno é, em igual medida, compreensível e irrefreável e tenho ciência de que meu saudosismo é, simplesmente, inócuo. Afinal de contas, “é pra frente que se anda”.

Isso não me impede, todavia, de externar minhas elucubrações...

O fato é que os senhores de idade e trabalhadores rurais nordestinos foram irreversivelmente incorporados à atual sociedade de consumo e estão abandonando suas tradições. Hoje em dia, dificilmente, vê-se algum deles usando aquele conhecido chapéu ovalado de couro cru, típico dos vaqueiros, ou mesmo o regular chapéu de palha de agricultor. Tampouco é possível vê-los vestindo aquela tradicional camisa de linho branca ou as sandálias típicas. Até o fumo de rolo foi, em regra, sucedido pelos modernosos cigarros com filtro.

Tais artigos vêm sendo substituídos, creio eu, por conveniência e por economia. É que os tradicionais itens são, agora, provavelmente, “retrô” ou integram a categoria de coisas “gourmet”, embora não sejam, propriamente, comestíveis. Acredito que sejam, agora, cada vez mais difíceis de achar. Além disso, são de fabricação trabalhosa, o que redunda num custo mais elevado de produção, prejudicando sua capacidade de concorrência com as utilidades chinesas.

Enquanto isso os produtos asiáticos e/ou contrafeitos, de baixo custo, vem invadindo as cidades interioranas. No cálculo mental que venho fazendo, sem qualquer certeza matemática e reduzido grau de confiabilidade, avalio que cerca de 40% dos senhores que costumam cobrir suas cabeças o fazem usando bonés de marcas famosas ou de bandas de forró. É possível ver, hoje em dia, senhores de idade avançada usando bonés de aba reta “John John” ou os populares bonés que homenageiam bandas como “Aviões do Forró” e “Garota Safada”.

As camisas de linho, a seu turno, vem sendo substituídas por camisas de times de futebol com profunda identificação local, como o Barcelona ou o Arsenal, por camisas com jacarés desenhados ou de tecido sintético. O calçado, agora, é de solado de borracha, de provável origem estrangeira.

Os tradicionais meios de transporte também estão sendo abolidos. Os asininos e quadrúpedes análogos (jumentos, mulas), esses grandes brasileiros, segundo Luiz Gonzaga, vem sendo, paulatinamente, substituídos por motocicletas (devem ser asiáticas também) e passam por difíceis momentos na sua escalada evolutiva.

É que constituem bens semoventes de pouca procura no interior, sendo vendidos a preço de banana nas feiras, quase como um favor a quem vende, o que vem pondo em risco seu futuro nestas paragens. Ouvi até falar na exportação desses animais em navios para o público chinês. (Talvez uma forma de equalizar essa desvantajosa relação comercial, mas, ainda assim, um destino presumivelmente indesejado pelos animais).

As mocinhas abandonaram, definitivamente, o clássico vestido de chita. Agora vestem as universais roupas curtas, de tecido sintético, consagradas pela moda internacional, e usam, como adorno no pescoço, o fio dos fones de ouvido, acoplados ao telefone celular.

Os sotaques da atual geração também foram levemente modificados. A fala arrastada característica da região vem sendo preenchida com o “s” paulisssta e intercalada com o quase goianês das redondezas das satélites de Brasília, provável fruto de sucessivas gerações migratórias pelo “sul” do país. Há espaço, ainda, para neologismos e gírias, como o “ok” e o “beleza”.

No final das contas, acho que somente não mudou em nada a capacidade desse povo de fazer graça com acontecimentos cotidianos e o humor à flor da pele que caracteriza o sabido matuto nordestino. São de uma criatividade e espontaneidade merecedores de profundo estudo neurocientífico e proferem ditos capazes de desanuviar os mais pesados ambientes.

Enfrentando as mais adversas dificuldades, como a seca e o calor que assolam a região, encontram disposição para soltar as mais variadas pilhérias. Aliás, semana passada perguntei a um senhor qual a idade dele. Ele respondeu: “Dr., faça uma pergunta mais fácil. Eu sei que nasci em 1940, mas as contas eu deixo pro senhor que é estudado.

De fato, como disse Euclides da Cunha, “o sertanejo é, antes de tudo, um forte”. Acrescento que, além disso, é bastante espirituoso.

FBX
















quarta-feira, 12 de outubro de 2016

Reencontro



O encontro não era esperado, embora fosse previsível.

Tomada de surpresa, os primeiros segundos são de adrenalina. A boca está seca. O coração, disparado.

Contendo-se, toma um assento. Enquanto se acomoda, doutrina a si mesma: "aja com naturalidade".

"Me refiro às partículas e não ao composto", diz ele, alheio à nova presença no ambiente.

Mexendo em seus papéis, ela finge estar se envolvendo na discussão.

Não está, todavia, envolvida. Aguarda ser notada e premedita suas ações.

"Tenham cuidado ao inverter a lógica. A equação só funciona em um sentido", diz ele, voltando-se, agora, ao grupo.

Ajeitando os cabelos por trás da orelha, ela tenta manter longe o olhar. "Olhos denunciam", pensa.

Não podendo mais fugir ao contato, cede.

"Boa tarde, seja bem-vinda".

Nesse momento seu cérebro feminino começa a trabalhar em sua melhor capacidade avaliativa. O conhecimento adquirido de anos de relacionamentos interpessoais é posto à prova. Padrões comportamentais universalmente repetidos ajudam na tarefa de detecção da permanência de interesse. (Desde a adolescência seu sistema nervoso central vem aperfeiçoando a técnica).

Nos seus expressivos e masculinos olhos, contudo, parece haver a serenidade de quem nada esconde. Nas suas palavras, a tranquilidade de quem não evita se deixar ver. "Parece feliz", ela pensa, concluindo de forma simples uma complexa tarefa rapidamente realizada pelo seu cérebro.

"Prestem atenção na escala", ele frisa.

Enquanto isso, ela continua analisando-o meticulosamente. Observa seus gestos, tenta ler suas expressões. Avalia-o. "Será que encontrou alguém?". "Na mão não há ouro".

"Todos entenderam?" Ele questiona.

Não adianta. Nesse ponto aquilo, o trabalho, já não mais lhe interessa. Não a ela. A naturalidade das palavras dele, do seu discurso, incomoda, entristece. Após um breve diálogo interno, constata: "ele está feliz".

"Terei que me ausentar um pouco mais cedo em função de um compromisso", disse ele, abruptamente.

(Desânimo)
A quase certeza transformou-se em convicção.

A sala agora parece-lhe vazia. Um silêncio ensurdecedor invade-lhe a mente. Calafrios lhe atravessam a espinha. Suas orelhas ardem como brasa.

C'est fini.

Com o rosto lívido, disfarçando o inescondível, ela se despede formalmente: "prazer revê-lo".

18:00. Fim da reunião.

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