sexta-feira, 28 de junho de 2019

Agonia

Processo volumoso, de páginas encardidas. Percorro as folhas dos autos, entre um espirro e outro. Leio-as, uma a uma. Documentos que não conheço e informações técnicas incognoscíveis.
Não compreendo, nem superficialmente.

Volto ao início. Procedo à mesma operação. Repito-a, cuidadosamente, com obstinação. 
Sem avanço, frustro-me e levanto-me, rangendo a cadeira.

Saco da geladeira a garrafa d’água. Ela sua ao meu toque. Sente minha angústia. Compartilha meu pesar. Me conforta. 
Encho um copo do líquido e direciono-o para o bico fluorescente da sala. A luz atravessa a água e atinge minha retina. Fecho os olhos.

Vem a lucidez que me faltava. 

Retorno à escrivaninha. 
Escrevo em caneta: “Designo audiência para a próxima quarta-feira. Compareçam autor e réu”.

No dia marcado, o autor, sem delongas, toma da palavra e diz: “Dr., esqueça o que tá no papel, eu fico satisfeito com isso”. Ato contínuo, diz o réu: “se eu soubesse, já tinha dado”.

Em 2 minutos, aberto o áudio, encerro a questão, oralmente: “havendo composição amigável, cabe ao Estado-Juiz homologar o acordo para que surta os efeitos pretendidos pelas partes, P.R.I”.

Assinando a ata, recordo Leonardo da Vinci, que dizia: “A simplicidade é o mais alto grau de sofisticação”.

Tesouro

O tempo escorre pelos nossos dedos, como grãos de fina areia numa ampulheta. Ele é restrito e finito, como é tudo que tem altíssimo valor intrínseco.

(...)

Em toda a história, tudo que sempre foi especial e importante o foi possuído por poucos e por pouco tempo. 

As coisas realmente boas são, por essência, limitadas e de acesso restrito.

As riquezas inebriantes, o prazer refinado, a suprema inteligência, a boa música e a beleza impactante são singularíssimas (e excepcionais).

São desvios fora da curva. São pequenos feixes de luz na escuridão do Universo. São barcos à deriva num imenso oceano de mediocridade.

Poucos as têm. Mesmo assim, se as possuem, as detém em pequeníssima quantidade. 

Basta ver que Páris, irmão de Heitor e filho de Príamo, somente possuiu Helena de Tróia por pouquíssimo tempo.

Tudo que é precioso não é e nunca foi abundante. Pelo contrário, sempre foi restrito.

(...)


Assim é a vida. Uma experiência espetacular e acachapante, porém muitíssimo curta. A morte, por outro lado, é caudalosa e exaustivamente longeva. Não tem fim.

Sendo a vida recheada de bons e maus momentos, cabe desfrutar dos primeiros e tirar lições dos últimos. Deve-se extrair tudo dela e sorver até a última gota, pois não se desperdiça o que é sublime.

(...)

Portanto, esqueça a música: não temos todo tempo do mundo.

O filtro da relevância para aborrecimentos sempre deve estar ligado. 

Sem queimação de graxa, olhando para frente.

Para a vida, não há bis. 

domingo, 16 de junho de 2019

Živeli!


Não obstante o cansaço habitual das longas conexões aéreas para chegar em casa, tive uma manhã, episodicamente, agradável hoje ao pegar um vôo.




Em alguns aeroportos na Europa são posicionados pianos em alguns setores para que os transeuntes possam tocar algo que lhes venha à cabeça no momento.




Trata-se de um importante estímulo cultural, que muito me agrada, sobretudo pela escolha do instrumento (piano), que considero belíssimo, no desenho e nos sons que produz, e que é digno de ser mais difundido, dado o seu atual e imerecido desprestígio no mundo musical, que, suponho, deva-se à sua difícil mobilidade e preço inacessível.




(...)




Sucede que, momentos antes do embarque, timidamente, tomou assento ao piano defronte ao portão B19 uma garota muito jovem, aparentemente iniciante musicista.




De cabelos loiros, olhos tímidos e motivada pelos pais com tapinhas nas costas, ela iniciou a executar uma sonata que, na minha ignorância musical, confesso, desconheço.




Seus dedos longos e finos se movimentavam, num ritmo impressionante, golpeando as teclas com a precisão de um neurocirurgião em percuciente ofício.




Buscava ela, não extirpar, do córtex, um canceroso tumor maligno, mas sim sentido e harmonia daquele emaranhado de notas e acordes, abrangente de todo o espectro das frequências audíveis.




A execução da peça deu-se com rigor e precisão rítmica, de maneira profundamente tocante.




As pessoas, absorvidas pelo som, se aproximaram, discretamente, e circundaram, amistosamente, a jovem artista, o que lhe deu o respaldo motivante para que empregasse ainda maior talento nas teclas de madeira maciça.




O resultado foi um momento, aparentemente, banal, simples, mas sublime, como, aliás, são mais suscetíveis de ocorrerem às coisas que acontecem naturalmente, sem preparo ou de improviso, ao oposto das que são fruto de deliberação ou prévio opino.




(...)




No fim, a apatia e timidez européias furtaram um mais vivo aplauso à artista.




Ela levantou-se, com a discrição e serenidade dos que são competentes por hábito - e não por ocasião - e retornou ao seu assento de origem, sem alarde ou histrionismo.




Recebeu um beijo na testa dos pais e sentou-se, tranquilamente, como se nada tivesse acontecido.




Nesse momento, já se fazia o contido silêncio por alguns segundos.




Nada foi dito: porque, para isso, são inúteis as palavras.




Experimentamos, coletivamente, o conjunto de sensações e a fenomenologia que somente a boa música executada pode produzir: a de fazer compreender, com o coração, por melodia, o que não é passível de se transmitir por linguagem falada ou escrita.




Ou, como mais precisamente dito por Schopenhauer, “a música exprime a mais alta filosofia numa linguagem que a razão não compreende”.




É o conjunto de sentimentos que não toca e nunca tocará a alma dos cínicos. É a experiência somente vivida por aquele que à fragilidade se permite. É o deleite da alma por meio dos sentidos. Tem cheiro, sabor e peso. Afeta, abala e agride.




Cura, também.




Chego a concordar com o que disse Shakespeare: “o homem que não tem a música dentro de si e que não se emociona com um concerto de doces acordes é capaz de traições, de conjuras e de rapinas”.








(...)









(Há, claro, os que são capazes de tudo isso e que, também, curtem boa música).