quinta-feira, 3 de novembro de 2016

Ensaio Empírico sobre a Mentira (uma ferramenta a ser usada com parcimônia)



Ninguém esconde que a mentira faz parte da existência animal neste planeta. Os animais o fazem para sobreviver, quando, por exemplo, se camuflam ou se fingem de mortos para não serem comidos por um predador. De sua parte, os seres humanos o fazem com ainda mais frequência, sendo pródigos na arte, visando a propósitos que variam desde a autoproteção, compaixão com o próximo ou, até mesmo, para causar dano a alguém.

Mente-se em gestos, ações e palavras. Até mesmo uma expressão facial pode consistir numa inverdade ou induzir alguém a ter uma visão equivocada sobre determinado fato. Em geral, as mentiras causam pouco dano ou servem à manutenção de harmonia nas relações humanas. Não me consta, por exemplo, que qualquer marido dotado de bom senso responderia afirmativamente à pergunta: “amor, você acha que estou gorda?”.

Fato é que há os mentirosos compulsivos e as pessoas que mentem, reiteradamente, com propósitos menos nobres. Dessas temos que nos proteger.

Identifico, cotidianamente, duas grandes espécies de mentirosos: os contadores de histórias (story tellers) e os lacônicos.

A primeira categoria, a do contador de histórias, tem, em geral, uma visão agigantada de si mesmo. Acreditam, piamente, na sua capacidade de convencimento. Acham-se inteligentes a ponto de inventar uma história diversa da verdadeira e fazê-la crível a ponto de enganar mentes experientes. Em geral, tais pessoas têm leves desvios de personalidade relacionados à forma como se enxergam, além de traços de psicopatia, e costumam enganar, com facilidade, pessoas menos atentas.

Seu modus operandi é desenhar, mentalmente, uma nova estória e preenchê-la com detalhes. Na verdade, sendo ele, o contador de histórias, experiente no ramo da inverdade, sabe que os detalhes conferem maior credibilidade a qualquer narrativa, por isso prezam por contar uma estória repleta de informações acessórias, como uma cereja para enfeitar o bolo.

Tais pessoas conseguem convencer, com êxito, os mais incautos e aqueles que não têm qualquer conhecimento neurolinguístico, mas são os mais fáceis de identificar para quem, de fato, trabalha e tem experiência com o descobrimento da verdade.

Na prática, a melhor estratégia é deixar que eles falem à vontade e que dêem a maior quantidade de detalhes possível sobre a estória que contam. O ideal é que sejam até mesmo estimulados, por meio de gestos e sinais visuais, a que falem sobre os detalhes da narrativa.

Nesse ponto, é fundamental que o inquiridor tome nota ou recorde de aspectos periféricos da estória. Como diz o ditado, “o diabo mora nos detalhes”. Sendo a estória inverídica, certamente, haverá falhas no desenvolvimento da narrativa e, o principal, inconsistências entre as informações dadas.

É improvável que os elementos centrais da narrativa não se encaixem porque o discurso foi ensaiado e, certamente, o mentiroso se preocupou em conferir harmonia entre os principais aspectos da estória. Isso não ocorre, contudo, com os elementos periféricos, pois esses são, em tese, desimportantes e, na visão do mentiroso, apenas um adorno para conferir maior credibilidade à estória.

Após toda a exposição do fato pelo mentiroso, é essencial confrontá-lo com as informações periféricas (e não as principais) que ele deu. Nesse ponto, o castelo de cartas começa a desmoronar. Primeiramente, porque o mentiroso havia se preocupado em preparar mentalmente respostas para os pontos principais da estória inventada e é pego de surpresa ao ser inquirido sobre dados, em tese, de pouco relevo. Essa linha de abordagem confere um elemento de stress que tem o condão de desestabilizar aquele que mente. Em segundo lugar, nesse ponto o mentiroso começa a ter a noção de que sua missão de enganar não será tão fácil como geralmente costuma ser, sendo-lhe apresentada uma situação mais desafiadora do que a que é acostumado a enfrentar nos seus desvios do dia a dia.

Na prática, ele, em geral, começa a demonstrar fisicamente o desconforto, escondendo as mãos debaixo da mesa, limpando o suor da testa com a manga da camisa ou até enxugando o suor das mãos na calça, além de inúmeros outros sinais do conflito entre seu subconsciente, que sabe da falsidade dos dados, e seu consciente, que racionalmente desenhou a falsa narrativa. No fim das contas, o desconforto é ainda avolumado pela ciência de que será, eventualmente, descoberto na mentira.

Não é raro que, em determinado ponto, comecem a assumir parcela da verdade ou que, cientes da sagacidade de quem os questiona e de que não vão conseguir convencer, partam para uma versão ainda não completamente verdadeira, mas mais próxima do que, de fato, ocorreu. Na verdade, eles costumam ter sucesso nas suas incursões mentirosas nas suas vidas privadas e é a surpresa de não estarem tendo êxito na empreitada que lhes leva à ruína.

A outra modalidade de mentirosos é a mais difícil de identificar para os profissionais, enquanto o leigo costuma ter a certeza de que os identificou, embora isso nem sempre seja a verdade. É que uma considerável quantidade de pessoas responde com timidez e discurso lacônico ao serem colocadas na situação de questionamento, pelo só fato de estarem nessa situação de stress psicológico.

A leitura que o leigo faz daquele que responde de forma lacônica ao ser questionado, em geral, é a de que o interrogando está faltando com a verdade. Não que isso não seja verdade na maioria das situações, mas é preciso divisar e identificar aquelas pessoas que emudecem diante do stress ou que não conseguem se expressar com qualidade em situações em que são postas diante de intenso questionamento.

Nesse caso, aquele que pergunta consegue observar, nas reações do sujeito, os sinais neurolinguísticos de stress e ansiedade (que geralmente denunciam o discurso mentiroso), mas fica difícil discernir se aqueles sinais são oriundos da tensão derivada da própria situação de inquirição ou se decorrem do conflito interno entre o subconsciente, que sabe que o discurso é falso, e o consciente, que inventou a estória.

No geral, o fato de a pessoa questionada não dar maiores detalhes ou não conseguir responder é, como o leigo costuma presumir, indicativo de que, efetivamente, não está dizendo a verdade. Quem conta mentira (e não tem o perfil do story teller), geralmente, o faz usando um discurso genérico e evita entrar em detalhes, pois teme não ter habilidade mental suficiente para manter a coerência na construção da sua narrativa.

Um exemplo de uma história verdadeira é a minha neste momento. Estou escrevendo este texto de um ônibus branco e azul da empresa Progresso em direção à cidade do Recife. O motorista, curiosamente, perguntou se havia passageiros que desceriam na parada da Macaxeira e em Abreu e Lima. Digo curiosamente porque, em geral, eles param automaticamente em tais lugares, questionando aos passageiros se vão descer somente no momento da parada.

Essa narrativa tem prováveis indícios de verossimilhança. Isso porque nela foram exprimidos, com naturalidade, dados que somente quem, de fato, vivenciou a experiência poderia atestar e é possível notar uma relação de pertinência do sujeito com a situação vivida, inclusive com o sentimento de curiosidade do narrador.

Um mentiroso lacônico (e não story teller) contaria essa mesma estória da seguinte forma: “um dia desses fui para Recife de ônibus”. Não diria o dia e nem detalhes, com o objetivo de não deixar nenhuma ponta fora do lugar. Diante da pouca quantidade de informações, o questionador, certamente, perguntaria por mais detalhes, como, por exemplo, se o ônibus estava lotado. Nesse ponto o mentiroso diria: “mais ou menos”.

Na verdade, o mentiroso não dá os detalhes porque tais detalhes nunca existiram, assim como não existiu a própria estória. O mentiroso lacônico também costuma não inventar tais detalhes porque não confia na sua capacidade mental de manter coerência na narrativa construída e prefere minorar os riscos de entrar em contradição.

A dificuldade, em geral, ocorre quando a pessoa inquirida não ostenta muito autocontrole emocional, porque, como dito, os sinais visíveis de stress que exterioriza podem não decorrer da aflição psicológica que acomete aquele que mente, mas sim somente da própria situação de questionamento.

Para contornar essa dificuldade é importante variar as perguntas feitas ao questionado entre temas em que não haveria o presumível interesse de mentir e temas em que haveria esse interesse. Geralmente esse processo é mais demorado até mesmo para que a pessoa questionada consiga reduzir o nível de ansiedade que atinge o pico nos momentos iniciais de inquirição. Após algumas perguntas leves e desinteressadas sobre temas como quantidade de filhos, cor da casa etc., é natural que a pessoa questionada fique um pouco mais relaxada. (É importante lembrar que tais dados podem ser ainda usados para eventual confrontação futura com outros pontos da narrativa).

Sentindo um maior conforto da pessoa inquirida pode o interrogador adentrar em temas mais centrais para o deslinde do caso, pontos em que haveria presumível interesse em mentir. Se a pessoa interrogada voltar a demonstrar sinais intensos de stress psicológico nesse momento é uma indicação de que aquele desconforto decorre do próprio fato de mentir, ou seja, do citado conflito entre o subconsciente e o consciente e não da situação de questionamento em si.

Ainda assim, é necessário bem valorar e sopesar as informações prestadas em conjunto, procurando por inconsistências e, ainda, desprezar algumas informações falsas que a pessoa questionada, eventualmente, dá, mas que não interessam para descobrir a verdade sobre o fato central perquirido. Um exemplo disso é o da companheira que diz ser casada na igreja para não sofrer qualquer tipo de julgamento moral, quando, na verdade, apenas convive com o companheiro. Tal alegação mentirosa sobre seu estado civil, fundada em um preceito de ordem moral, não significa que ela também mentiria, por exemplo, sobre a quantidade de filhos em comum com o companheiro (se esse for o fato principal a ser apurado).

No final das contas, há, ainda, uma série de outras percepções que são difíceis de ser vertidas em palavras para os propósitos deste texto, mas que são trazidas pela experiência do dia a dia, após desenvolver essa tarefa de avaliação da verdade, repetidamente, por milhares de vezes. Há, por exemplo, gestos, palavras e olhares universais que costumam ser empregados pelas pessoas em discursos mentirosos e que são reveladores da inconsistência do conteúdo narrado. É importante que aquele que avalia consiga identificar, também, em quais pontos do discurso haveria presumível interesse em mentir para monitorar as variações de níveis de ansiedade nesses pontos da narrativa. Além disso, a tarefa fica facilitada quando já se tem um conhecimento prévio de como aquela pessoa costuma lidar em situações de stress e comparar essa lembrança de comportamento com o demonstrado quando da inquirição.

Esclareço que tais conhecimentos não garantem 100% de eficácia no descobrimento da verdade, porque nós, seres humanos, somos muito complexos e reagimos de forma diferente aos inúmeros estímulos que nos são dados. Até mesmo o polígrafo é passível de ser enganado e há treinamentos desenvolvidos por agências de inteligência com esse específico propósito. Não obstante, esses conhecimentos ajudam a identificar fragilidades no discurso e, certamente, dificultam a tarefa daquele que mente.

Por fim, desaconselho empregar as ideias aqui descritas em suas relações privadas sob pena de comprometimento do seu bem estar. Na verdade, pequenas mentiras tornam a vida menos dura e estar sempre identificando e avaliando quando alguém está mentindo, além de ser um comportamento bizarro, tira um pouco da graça da vida. Mantenha tais conhecimentos na seara profissional ou para situações extremas e viva a vida, como propõe o blog, de maneira leve.

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