segunda-feira, 20 de março de 2017

Decisão Salomônica

Uma celeuma envolvendo um galo vem movimentando uma cidade da região do Cariri nordestino. Por questões de proteção à intimidade e até para me proteger de pedidos de indenização, não vou revelar a verdadeira identidade dos partícipes, embora merecessem o devido reconhecimento por ilustrarem essa interessante história.
Tudo começou com uma corriqueira transação comercial de cidade interiorana: a compra de um galo...
O feriado de São João se aproximava na pequena cidade do interior paraibano e Dona Miúda foi à barraca de Seu Bonifácio, conhecido comerciante da urbe, para dar uma olhada nas mercadorias que ele tinha para vender.
Analisando os produtos por baixo do seu olhar clínico de septuagenária nordestina, passou ao largo dos maxixes e melancias, aparentemente velhos, para debruçar-se sobre os galos expostos à venda na barraca.
Após muito observar, acabou por escolher um belo exemplar de galináceo, de peito estufado, canto grave e cores radiantes. O anúncio em cima da gaiola dizia: “galo valente”.
Pois bem. Pago o preço, transportou o galo para casa, preocupando-se em isolar bem os esporões para evitar acidentes, afinal, segundo ela, “um bichão desse deve ser brabo feito cavalo de vaquejada”.
Devidamente instalado em seu novo lar, o galo, logo apelidado de Fifão, começou a desbravar o terreiro. Assim que lá chegou, incontinenti, começou a fazer muitas amizades. A sociabilidade, aliás, era seu traço mais marcante; nada daquele tom agressivo e falastrão dos galos comuns. Fifão era um galo gentil e extremamente polido. Segundo Dona Miúda, era um galo que, de tão asseado e educado, ciscava de lado para não ter o perigo de sujar alguém atrás.
Os dias se passaram e Fifão conquistou a simpatia de todos, inclusive dos vizinhos. Isso porque Fifão tinha tanta consideração pela vizinhança que somente cantava às 06:00h para não prejudicar o sono alheio. Seu canto, aliás, despertaria inveja em grandes tenores do século XX, como Bocelli e Pavarotti.
Ocorre que, em que pese o notório carisma do animal, Dona Miúda não estava contente com ele. É que Fifão, a par da amizade com os demais galináceos do terreiro, não se aproximava mais intimamente das galinhas, não manifestando o menor desejo de ser pai.
Não se sabe se por temer a responsabilidade do encargo da paternidade, ou por outras razões desconhecidas do povo da cidade, mas o fato é que Fifão evitava um envolvimento mais sério com qualquer outra galinha.
Vendo seu projeto de produzir pintos escoar pelas suas mãos, Dona Miúda logo se revoltou com o vendedor do animal, Seu Bonifácio, e, tendo perdido a paciência por completo, foi ter com ele uma conversa séria, para pedir o ressarcimento do que gastou ou um abatimento proporcional do preço, pois, segundo ela, “Fifão teria vindo com defeito de fábrica”.
Não tendo, Seu Bonifácio, anuído com a devolução de qualquer valor, instaurou-se o litígio que, como não poderia deixar de ser, veio a ser submetido a Dr. Salomão, antigo e respeitado magistrado da Comarca...
Dr. Salomão, de uma técnica e sobriedade marcantes, iniciou sua abordagem mental considerando tratar-se de vício redibitório (expressão jurídica que indica que o produto foi vendido com defeito não perceptível a olho nu). Pensou ele, internamente: “o caso parece simples, pois o galo teria a função de reproduzir e, não tendo cumprido esse desiderato, estaria caracterizado o vício do produto, de forma a autorizar, no mínimo, uma compensação ao consumidor”. Sendo essa sua premissa inicial, começou a ouvir os demais presentes na ocasião...
Dona Miúda insistiu que teria sido lesada, pois nunca imaginou que o galo que adquirira pudesse não ter interesse nas galinhas e dessa falta de entusiasmo adviria seu enorme prejuízo, já que sua produção de pintos estava completamente parada.
Seu Bonifácio, a seu turno, visivelmente irritado por estar na condição de réu, defendendo sua causa sem advogado (já que fora Vereador por um tempo e sabia usar as palavras), levantou o seguinte argumento:
̶ Meritíssimo, eu nunca prometi a Dona Miúda que esse galo fosse ser, por assim dizer, namorador, nem que ele tivesse qualquer vontade de ser pai. O que prometi foi um galo valente e não há nada que contradiga isso. Até onde sei não houve qualquer covardia por parte do galo. Não posso aceitá-lo de volta porque já gastei o dinheiro da venda dele e, além disso, é difícil demais para um galo já crescido mudar de terreiro.
Após ponderar alguns segundos, Dr. Salomão, como é do costume judiciário, passou a palavra ao Ministério Público para que pudesse opinar sobre o caso.
O membro do Ministério Público atuante no caso, Dr. Jorge, era um sujeito erudito, recentemente chegado da França, onde havia participado de extenso programa de mestrado sobre os direitos dos animais, o que talvez tenha influenciado seu parecer, no seguinte sentido:
̶ Excelência, com a devida vênia ao representante da parte autora, considero que a pretensão autoral parte de uma premissa equivocada. É que Fifão não pode ser considerado produto. Na verdade, tem ele, se Vossa Excelência me permite a inovação, prerrogativas próprias de animal. É ele sujeito de direitos e não objeto de um direito titularizado pela autora. Tem ele, portanto, a plena faculdade de se relacionar ou não com outros animais da sua ou outra espécie, tendo ou não o desiderato reprodutivo.
Concluiu dizendo, ainda, que:
̶ Se, eventualmente, o que não parece ser o caso, Fifão quisesse se relacionar com uma ou mais galinhas, sem assumir o encargo da paternidade, a detentora do animal deveria lhe proporcionar meios seguros e eficazes de assegurar a satisfação do seu interesse, assim como deve permitir-lhe, no presente caso, que não se relacione com qualquer outro animal. Sugiro que Vossa Excelência rejeite o pedido autoral.
Dr. Salomão, visivelmente estupefato com a complexidade que havia tomado aquele caso que, a princípio, parecia banal, e enfadado com o severo dia de trabalho, após refletir alguns segundos, decidiu proferir sentença oral, que foi imediatamente transcrita pelo escrivão, nos seguintes termos:
“Tudo bem visto e examinado, considerando a extensão da pauta de audiências da tarde de hoje e que se achega o dia da confraternização junina deste Juízo, este Magistrado decide por bem comprar o galináceo sob discussão nos autos, pagando à parte autora o valor correspondente ao de sua aquisição.
Em função disso, declaro a perda superveniente do objeto discutido nos autos e, por consequência, resta EXTINTO O PROCESSO SEM RESOLUÇÃO DO MÉRITO, na forma do Código de Ritos.
Em face do reduzido proveito econômico da demanda, ficam os honorários advocatícios substituídos pelo convite aos envolvidos para comparecimento à citada confraternização, que ocorrerá amanhã, dia 22 de junho, às 13:00h.
Sem custas.
Proceda a copeira ao preparo do animal.
Publique-se. Registre-se. Partes intimadas em audiência.”
No fim, todos ficaram satisfeitos, não houve recurso e o processo foi arquivado.
  

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