domingo, 16 de junho de 2019

Živeli!


Não obstante o cansaço habitual das longas conexões aéreas para chegar em casa, tive uma manhã, episodicamente, agradável hoje ao pegar um vôo.




Em alguns aeroportos na Europa são posicionados pianos em alguns setores para que os transeuntes possam tocar algo que lhes venha à cabeça no momento.




Trata-se de um importante estímulo cultural, que muito me agrada, sobretudo pela escolha do instrumento (piano), que considero belíssimo, no desenho e nos sons que produz, e que é digno de ser mais difundido, dado o seu atual e imerecido desprestígio no mundo musical, que, suponho, deva-se à sua difícil mobilidade e preço inacessível.




(...)




Sucede que, momentos antes do embarque, timidamente, tomou assento ao piano defronte ao portão B19 uma garota muito jovem, aparentemente iniciante musicista.




De cabelos loiros, olhos tímidos e motivada pelos pais com tapinhas nas costas, ela iniciou a executar uma sonata que, na minha ignorância musical, confesso, desconheço.




Seus dedos longos e finos se movimentavam, num ritmo impressionante, golpeando as teclas com a precisão de um neurocirurgião em percuciente ofício.




Buscava ela, não extirpar, do córtex, um canceroso tumor maligno, mas sim sentido e harmonia daquele emaranhado de notas e acordes, abrangente de todo o espectro das frequências audíveis.




A execução da peça deu-se com rigor e precisão rítmica, de maneira profundamente tocante.




As pessoas, absorvidas pelo som, se aproximaram, discretamente, e circundaram, amistosamente, a jovem artista, o que lhe deu o respaldo motivante para que empregasse ainda maior talento nas teclas de madeira maciça.




O resultado foi um momento, aparentemente, banal, simples, mas sublime, como, aliás, são mais suscetíveis de ocorrerem às coisas que acontecem naturalmente, sem preparo ou de improviso, ao oposto das que são fruto de deliberação ou prévio opino.




(...)




No fim, a apatia e timidez européias furtaram um mais vivo aplauso à artista.




Ela levantou-se, com a discrição e serenidade dos que são competentes por hábito - e não por ocasião - e retornou ao seu assento de origem, sem alarde ou histrionismo.




Recebeu um beijo na testa dos pais e sentou-se, tranquilamente, como se nada tivesse acontecido.




Nesse momento, já se fazia o contido silêncio por alguns segundos.




Nada foi dito: porque, para isso, são inúteis as palavras.




Experimentamos, coletivamente, o conjunto de sensações e a fenomenologia que somente a boa música executada pode produzir: a de fazer compreender, com o coração, por melodia, o que não é passível de se transmitir por linguagem falada ou escrita.




Ou, como mais precisamente dito por Schopenhauer, “a música exprime a mais alta filosofia numa linguagem que a razão não compreende”.




É o conjunto de sentimentos que não toca e nunca tocará a alma dos cínicos. É a experiência somente vivida por aquele que à fragilidade se permite. É o deleite da alma por meio dos sentidos. Tem cheiro, sabor e peso. Afeta, abala e agride.




Cura, também.




Chego a concordar com o que disse Shakespeare: “o homem que não tem a música dentro de si e que não se emociona com um concerto de doces acordes é capaz de traições, de conjuras e de rapinas”.








(...)









(Há, claro, os que são capazes de tudo isso e que, também, curtem boa música).

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