Não
obstante o cansaço habitual das longas conexões aéreas para chegar em casa,
tive uma manhã, episodicamente, agradável hoje ao pegar um vôo.
Em
alguns aeroportos na Europa são posicionados pianos em alguns setores para que
os transeuntes possam tocar algo que lhes venha à cabeça no momento.
Trata-se
de um importante estímulo cultural, que muito me agrada, sobretudo pela escolha
do instrumento (piano), que considero belíssimo, no desenho e nos sons que
produz, e que é digno de ser mais difundido, dado o seu atual e imerecido
desprestígio no mundo musical, que, suponho, deva-se à sua difícil mobilidade e
preço inacessível.
(...)
Sucede
que, momentos antes do embarque, timidamente, tomou assento ao piano defronte
ao portão B19 uma garota muito jovem, aparentemente iniciante musicista.
De
cabelos loiros, olhos tímidos e motivada pelos pais com tapinhas nas costas,
ela iniciou a executar uma sonata que, na minha ignorância musical, confesso,
desconheço.
Seus
dedos longos e finos se movimentavam, num ritmo impressionante, golpeando as
teclas com a precisão de um neurocirurgião em percuciente ofício.
Buscava
ela, não extirpar, do córtex, um canceroso tumor maligno, mas sim sentido e
harmonia daquele emaranhado de notas e acordes, abrangente de todo o espectro
das frequências audíveis.
A
execução da peça deu-se com rigor e precisão rítmica, de maneira profundamente
tocante.
As
pessoas, absorvidas pelo som, se aproximaram, discretamente, e circundaram,
amistosamente, a jovem artista, o que lhe deu o respaldo motivante para que
empregasse ainda maior talento nas teclas de madeira maciça.
O
resultado foi um momento, aparentemente, banal, simples, mas sublime, como,
aliás, são mais suscetíveis de ocorrerem às coisas que acontecem naturalmente,
sem preparo ou de improviso, ao oposto das que são fruto de deliberação ou
prévio opino.
(...)
No
fim, a apatia e timidez européias furtaram um mais vivo aplauso à artista.
Ela
levantou-se, com a discrição e serenidade dos que são competentes por hábito -
e não por ocasião - e retornou ao seu assento de origem, sem alarde ou
histrionismo.
Recebeu
um beijo na testa dos pais e sentou-se, tranquilamente, como se nada tivesse
acontecido.
Nesse
momento, já se fazia o contido silêncio por alguns segundos.
Nada
foi dito: porque, para isso, são inúteis as palavras.
Experimentamos,
coletivamente, o conjunto de sensações e a fenomenologia que somente a boa
música executada pode produzir: a de fazer compreender, com o coração, por
melodia, o que não é passível de se transmitir por linguagem falada ou escrita.
Ou,
como mais precisamente dito por Schopenhauer, “a música exprime a mais alta
filosofia numa linguagem que a razão não compreende”.
É
o conjunto de sentimentos que não toca e nunca tocará a alma dos cínicos. É a
experiência somente vivida por aquele que à fragilidade se permite. É o deleite
da alma por meio dos sentidos. Tem cheiro, sabor e peso. Afeta, abala e agride.
Cura,
também.
Chego
a concordar com o que disse Shakespeare: “o homem que não tem a música dentro
de si e que não se emociona com um concerto de doces acordes é capaz de
traições, de conjuras e de rapinas”.
(...)
(Há,
claro, os que são capazes de tudo isso e que, também, curtem boa música).
Nenhum comentário:
Postar um comentário