A árvore algaroba que
guarnecia a entrada dos fundos está magérrima. É que estavam caindo galhos e
folhas em quintais alheios e essa situação estava gerando o maior falatório na
Rua do Curral.
Para não irritar a vizinhança foi necessário realizar sua poda
preventiva. E o pior é que fui
testemunha da tentativa de algarobicídio. (Tenho, também, a prerrogativa da não
auto incriminação, portanto nem me questionem se fui possível mandante do
crime).
O autor material do fato
foi um senhor de meia idade, botas longas e barbas longas, tal qual o avô de Zé
Ramalho (sem o ouro do colar). Seu Ramiro conduziu a operação de forma
consistente, vencendo os olhares de desconfiança dos transeuntes que por ali
passavam. Num carrinho de mão estavam os instrumentos do crime, ainda ensopados
com o sangue branco do malfadado vegetal. Eram uma foice e um machado.
O iter criminoso foi
bastante longo, o que é incomum em delitos contra vida, que geralmente
acontecem em instantes, como num surto de ciúmes de um marido. A empreitada toda durou dois dias inteiros, incluindo o
trabalho necessário para a remoção e disposição dos restos mortais.
Acompanhei todo o processo
pela janela (ictu oculi), admirado
com a habilidade do acusado em escalar a vítima e desferir-lhe golpes secos,
sem perder o equilíbrio em nenhum momento. Pela destreza empregada na execução do ato, suponho
que o acusado ostenta longa carreira nesse segmento de atividade. Deve possuir,
portanto, os tais antecedentes.
Quanto à dosimetria de
eventual pena, afora os antecedentes, pouco a ser digno de nota. Circunstâncias
judiciais, agravantes e causas especiais são todas inerentes à modalidade do
crime, não havendo o que se valorar em desfavor do réu.
Antevendo eventual
condenação, já que o réu praticou o fato em plena luz do dia, aos olhos de um
sem-número de cidadãos, passo a analisar as circunstâncias em que se desenrolou
a ação criminosa, tentando prever o imprevisível: se o Júri absolveria o
acusado.
A salvação para o réu
seria o reconhecimento de que agia em estado de necessidade, mas aí haveria a
necessidade de valorar e comparar os bens jurídicos, o que implica perguntar
aos jurados se seria razoável sacrificar a incolumidade da planta para garantir
que os terrenos vizinhos não tivessem galhos e folhas por ela despejados.
Trata-se de caminho
auspicioso para a defesa. Geralmente, os jurados tem maior simpatia por
situações em que eles mesmos podem se imaginar e é natural que se vejam mais
próximos da condição do vizinho que tem seu quintal bagunçado pela vítima do
que da condição de árvore.
Teriam que ser dispensadas
do múnus público do Júri, também, todas as pessoas que trabalham ou moram na
Rua do Curral. Eu, por exemplo, me declararia suspeito para apreciar o caso. É
que tenho uma relação de amizade íntima com aquela árvore e ela nem sabe disso.
Não me sentiria livre ou isento para decidir. Foi, sim, com grande pesar que
assisti aos broncos golpes dados por Seu Ramiro.
Aquela árvore era e é a
responsável, em grande parte, pela aparência bucólica do ambiente. Ela é quem
gentilmente cede seu lombo para que o implacável sol nordestino não recaia
sobre o meu. Ela é quem garante repouso para que pequenas avoantes possam estar
sempre cantarolando e alegrando o local. E tudo isso a troco de nada. Nunca me
pediu nada, nem mesmo água, porque até nisso ela é frugal. Diz não precisar de
muito para sobreviver e que basta um ou outro beberico para escapar.
Alguns dizem que ela tem
origem estrangeira, o que autorizaria até seu extermínio completo. Na minha
visão, seria a completa barbárie. Em que espécie de país viveríamos se fosse
possível tratar com tamanha desumanidade alguém pela condição de estrangeiro
ou, pior, somente por ter pais estrangeiros? Não, ela não merecia isso.
Independentemente de sua
origem ou dos atos que praticou, ainda que de extrema descortesia com os
vizinhos, ela merecia mais consideração. Amputação de membros não é pena aceita
nas democracias ocidentais e é uma medida muito gravosa para reprimir as
pequenas malcriações que ela cometeu.
Além disso, não é coisa
que se faça com uma senhora. Sem dispor do exame de Carbono 14 não consigo
precisar-lhe os verões, mas, pela altura de seus galhos, já passou, certamente,
pela menopausa.
Curioso é que, passadas
duas semanas do fato, todos já se acostumaram com o novo porte slim da árvore. Brasileiro tem memória
curta, de fato. A maioria usa agora a sombra de outras árvores para deixar suas
motos e bicicletas. Somente eu ainda não assimilei muito bem a mudança. Sinto
saudade do tempo em que ela abraçava todo o quintal e os que por baixo dela
passavam. Sinto falta do barulho que o vento operava sobre suas folhas.
Ela, agora, parece
tristonha feito cão sem dono e anda cabisbaixa feito criança que tomou bronca
dos pais. Disseram-me que em um ano ela se restabelecerá completamente. Uma
lição eu aprendi: não quero presenciar, novamente, sua poda.
FBX
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