segunda-feira, 10 de outubro de 2016

Algarobicídio





A árvore algaroba que guarnecia a entrada dos fundos está magérrima. É que estavam caindo galhos e folhas em quintais alheios e essa situação estava gerando o maior falatório na Rua do Curral.

Para não irritar a vizinhança foi necessário realizar sua poda preventiva.  E o pior é que fui testemunha da tentativa de algarobicídio. (Tenho, também, a prerrogativa da não auto incriminação, portanto nem me questionem se fui possível mandante do crime).

O autor material do fato foi um senhor de meia idade, botas longas e barbas longas, tal qual o avô de Zé Ramalho (sem o ouro do colar). Seu Ramiro conduziu a operação de forma consistente, vencendo os olhares de desconfiança dos transeuntes que por ali passavam. Num carrinho de mão estavam os instrumentos do crime, ainda ensopados com o sangue branco do malfadado vegetal. Eram uma foice e um machado.

O iter criminoso foi bastante longo, o que é incomum em delitos contra vida, que geralmente acontecem em instantes, como num surto de ciúmes de um marido. A empreitada toda durou dois dias inteiros, incluindo o trabalho necessário para a remoção e disposição dos restos mortais.

Acompanhei todo o processo pela janela (ictu oculi), admirado com a habilidade do acusado em escalar a vítima e desferir-lhe golpes secos, sem perder o equilíbrio em nenhum momento.  Pela destreza empregada na execução do ato, suponho que o acusado ostenta longa carreira nesse segmento de atividade. Deve possuir, portanto, os tais antecedentes.

Quanto à dosimetria de eventual pena, afora os antecedentes, pouco a ser digno de nota. Circunstâncias judiciais, agravantes e causas especiais são todas inerentes à modalidade do crime, não havendo o que se valorar em desfavor do réu. 

Antevendo eventual condenação, já que o réu praticou o fato em plena luz do dia, aos olhos de um sem-número de cidadãos, passo a analisar as circunstâncias em que se desenrolou a ação criminosa, tentando prever o imprevisível: se o Júri absolveria o acusado.

A salvação para o réu seria o reconhecimento de que agia em estado de necessidade, mas aí haveria a necessidade de valorar e comparar os bens jurídicos, o que implica perguntar aos jurados se seria razoável sacrificar a incolumidade da planta para garantir que os terrenos vizinhos não tivessem galhos e folhas por ela despejados. 

Trata-se de caminho auspicioso para a defesa. Geralmente, os jurados tem maior simpatia por situações em que eles mesmos podem se imaginar e é natural que se vejam mais próximos da condição do vizinho que tem seu quintal bagunçado pela vítima do que da condição de árvore.

Teriam que ser dispensadas do múnus público do Júri, também, todas as pessoas que trabalham ou moram na Rua do Curral. Eu, por exemplo, me declararia suspeito para apreciar o caso. É que tenho uma relação de amizade íntima com aquela árvore e ela nem sabe disso. Não me sentiria livre ou isento para decidir. Foi, sim, com grande pesar que assisti aos broncos golpes dados por Seu Ramiro.

Aquela árvore era e é a responsável, em grande parte, pela aparência bucólica do ambiente. Ela é quem gentilmente cede seu lombo para que o implacável sol nordestino não recaia sobre o meu. Ela é quem garante repouso para que pequenas avoantes possam estar sempre cantarolando e alegrando o local. E tudo isso a troco de nada. Nunca me pediu nada, nem mesmo água, porque até nisso ela é frugal. Diz não precisar de muito para sobreviver e que basta um ou outro beberico para escapar. 

Alguns dizem que ela tem origem estrangeira, o que autorizaria até seu extermínio completo. Na minha visão, seria a completa barbárie. Em que espécie de país viveríamos se fosse possível tratar com tamanha desumanidade alguém pela condição de estrangeiro ou, pior, somente por ter pais estrangeiros? Não, ela não merecia isso.

Independentemente de sua origem ou dos atos que praticou, ainda que de extrema descortesia com os vizinhos, ela merecia mais consideração. Amputação de membros não é pena aceita nas democracias ocidentais e é uma medida muito gravosa para reprimir as pequenas malcriações que ela cometeu.

Além disso, não é coisa que se faça com uma senhora. Sem dispor do exame de Carbono 14 não consigo precisar-lhe os verões, mas, pela altura de seus galhos, já passou, certamente, pela menopausa. 

Curioso é que, passadas duas semanas do fato, todos já se acostumaram com o novo porte slim da árvore. Brasileiro tem memória curta, de fato. A maioria usa agora a sombra de outras árvores para deixar suas motos e bicicletas. Somente eu ainda não assimilei muito bem a mudança. Sinto saudade do tempo em que ela abraçava todo o quintal e os que por baixo dela passavam. Sinto falta do barulho que o vento operava sobre suas folhas. 

Ela, agora, parece tristonha feito cão sem dono e anda cabisbaixa feito criança que tomou bronca dos pais. Disseram-me que em um ano ela se restabelecerá completamente. Uma lição eu aprendi: não quero presenciar, novamente, sua poda.

 FBX





Nenhum comentário:

Postar um comentário