segunda-feira, 10 de outubro de 2016

Crítica sobre a série The Americans



Tenho sofrido, ultimamente, com a falta de boas opções de filmes e séries para assistir. Esse tipo de entretenimento é, na verdade, a primeira opção de lazer de um bom contingente de cidadãos desta era digital e não sou exceção a essa regra.

Recentemente, temos visto lançamentos de uma série de filmes de super-heróis ou de quadrinhos, com aquelas estórias fantasiosas e repletas de ação sem sentido ou sem a mínima coerência. Em geral, esse tipo de filme ou série não me chama a atenção, embora mereça ressalva aquele Batman dirigido pelo fenomenal Christopher Nolan (em que Heath Ledger interpretou o Coringa).

Pois bem. Quando da chegada do final de semana passado, na sexta-feira à noite, decidi iniciar meu ritual de descompressão do trabalho, que consiste em vasculhar o Netflix ou Youtube até encontrar alguma coisa que eu não tenha visto e que considere interessante. Assim acabo assistindo a coisas inusitadas, como um documentário sobre as espécies de peixe do Rio São Francisco. Essa tarefa, aparentemente banal, não costuma ser fácil. É que, no Brasil, o Netflix traz poucas opções e um cinéfilo intermediário é capaz de esvaziar os melhores títulos em poucas semanas.

Havia, todavia, uma série que sempre me chamava atenção, tanto pela sua elevada avaliação pela crítica como pelo fato de ter sido indicada a alguns prêmios (como o Emmy). Apesar das referências, nunca tinha tido a coragem de a iniciar.

A série é The Americans, produzida pelo canal fechado FX e que conta, atualmente, com quatro temporadas. A minha resistência em experimentar o primeiro episódio residia, essencialmente, na proposta de enredo, que parecia oferecer mais ação sem sentido e o repetido entretenimento policialesco americano, como os clássicos estereótipos daquele tira alcoólatra, dotado de senso de dever, mas com uma vida atormentada por um caso mal resolvido no passado etc.

Ocorre que, não tendo encontrado melhor opção, arrisquei e me surpreendi com a qualidade da produção.

A série ilustra a vida de um casal de espiões russos da KGB que, durante a Guerra Fria, ingressaram nos EUA com a missão de se incorporar à cultura americana e de obter informações privilegiadas. Chegando lá, constituíram uma pacata família residente no subúrbio de Washington DC, com direito a dois filhos nascidos nos EUA e, portanto, americanos.

Até a metade do primeiro capítulo, à medida que identificava os elementos de roteiro que citei acima, continuava a me arrepender de ter iniciado a empreitada. Presumi que a série consistiria em cada capítulo narrar uma missão de espionagem do casal, com a ação e a adrenalina que acompanham o sem-número de filmes e séries que tem esse formato, a exemplo de The Blacklist, os Law and Order da vida, CSI etc.

Ocorre que, para além do “mais do mesmo”, identifiquei, também, profundos conflitos intersubjetivos e psicológicos entre os personagens e a atuação de um elenco que contribui muito para a qualidade da produção. O casal russo é formado por Elizabeth, nome fictício da espiã interpretada por Keri Russel, e por Phillip, espião interpretado por Matthew Rhys.

Enquanto Elizabeth tem um senso de dever mais apurado e é menos deslumbrada pelo american way of life, Phillip, seu esposo, demonstra latente afeição, não propriamente pelo país que o recebeu, mas pela qualidade de vida e liberdade de que dispunham os americanos naquela época, se comparados com aqueles que viviam sob o regime soviético.

Dessa distinção de visões surge o principal conflito do seriado. Enquanto Elizabeth tem lealdade incondicional às ordens emitidas pela “Central” (órgão diretivo da KGB), Phillip frequentemente as questiona, em função do risco que o cumprimento das missões traz à família, incluindo as duas crianças do casal.

Outro elemento que agrega turbulência ao relacionamento do casal é o fato de que somente formam um casal por determinação da KGB, como uma forma de se encaixarem no tradicional perfil da família americana dos anos 1980, com o propósito de levantarem menor suspeição sobre suas atividades.

Além disso, em que pese houvesse atração inicial de Phillip por Elizabeth, nunca houve reciprocidade ou mesmo efetiva admiração da esposa por ele, talvez pelo perfil menos “comprometido com a pátria” ou mais soft do marido, muito distinto da postura de obstinação e frieza russa da espiã.

Desse cenário, surgem profundas desconfianças mútuas. Tanto da parte de Elizabeth, que acredita que seu marido pode desertar da sua missão ou tergiversar em situações críticas, como de Phillip, que acredita que sua esposa priorizaria o seu dever funcional de espiã aos seus filhos ou a ele.

Além disso, a função por eles exercida demanda que iniciem relacionamentos românticos e sexuais com pessoas que possam levar à obtenção de informações importantes para a agência russa, o que resulta no ciúme, muitas vezes não contido, sobretudo de Phillip, que não consegue manter o profissionalismo e distanciamento de Elizabeth, muito bem colocados pela atriz Keri Russel, numa consistente atuação.

Não bastassem esses componentes, um dos líderes do Departamento de Contra-Espionagem do FBI passa a morar na residência ao lado da família. Stan Beeman, interpretado por Noah Emmerich, que tem aquela cara e jeitão padrão dos policiais americanos, começa a desenvolver uma relação de amizade com o vizinho. Ambos, ele e Phillip, mesmo sem que o policial americano saiba, trabalham no mesmo segmento e guardam, por dever de ofício, muitos segredos que não podem revelar abertamente.

Daí surge a necessidade, principalmente do policial americano, de ter alguma companhia para sair da rotina de trabalho e do constante desconforto que o dever de sigilo impõe na sua relação com a esposa. O contato com Phillip dá-se, em mais de uma oportunidade, com o intuito de apenas relaxar e bater um papo despreocupado. Acreditando no potencial benéfico da relação para a obtenção de informações, Phillip não foge do contato com o vizinho, o que o expõe a situações arriscadas, em função da perspicácia do policial.

O policial americano, aliás, começa a passar por uma sucessiva deterioração moral. Inicialmente cioso dos seus deveres éticos e funcionais de policial, passa a relativizar seus conceitos à medida que os primeiros resultados do embate entre as agências começam a aparecer, como o assassinato de um colega seu por Phillip, numa circunstância quase acidental.

Em retribuição, o policial, não sabendo que Philip havia sido o autor do fato, acaba por assassinar um membro da KGB, a título de revanche. Outra dinâmica interessante é o relacionamento do policial americano com uma burocrata da repartição diplomática russa nos EUA, que, inicialmente recrutada por ele para a obtenção de informações, passa, também, a seduzi-lo, não tendo ficado claro, até o momento, se fará o jogo duplo, também em favor dos russos.

No geral, o seriado tem como pano de fundo as profundas diferenças existentes entre o modelo de sociedade norte-americano e o regime soviético e conta com situações interessantes e inusitadas derivadas desse conflito cultural. Há uma cena interessante, que ilustra bem a tônica do seriado, na qual Phillip, nascido na Rússia, acompanha seu filho em uma daquelas clássicas cerimônias comemorativas nas escolas americanas.

Chegando lá, seu filho, que desconhece o fato de que seus pais são espiões russos, demonstra profundo envolvimento com a cerimônia, chegando a se emocionar com o hino americano. Phillip, numa cena memorável, apenas assiste, impassível, à situação, que não deixa dúvidas de que seu filho também é parte da cultura que ele tinha por missão combater. A ficha caiu naquele momento.

A série, em conclusão, merece ser acompanhada e tem conflitos pessoais que a transformam mais em um drama sobre relações familiares do que, propriamente, numa série de ação. Nota: 8,5.






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